Publicado originalmente me 1963, Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, está dividido em um prefácio e cinco capítulos a saber: Estigma e identidade social (cap. 1), Controle de informação e identidade pessoal (cap. 2), Alinhamento grupal e identidade do Eu (cap. 3), O Eu e seu Outro (cap. 4) e Desvios e comportamento desviante (cap. 5).
Capítulo 1: Estigma e identidade social
No primeiro capítulo, Goffman define
estigma a partir do entendimento grego antigo e segue passando pela idade média
até chegar ao mundo atual – no caso, atual sendo referência ao momento de
publicação do livro, a década de 1960.
Os
gregos criaram o termo para fazer referência aos sinais corporais que
possibilitariam identificar alguém que tivesse feito algo ruim, que fosse uma
pessoa má ou mesmo extraordinária, moralmente falando. Essas marcas podiam ser
de cortes, feitas com ferro em brasa e anunciavam para quem as visse que se
estava diante de um assassino, traidor, escravizado e que se deveria evitar
aquela criatura, principalmente se cruzasse com ela pelas ruas, em espaços
públicos.
Na
idade média criou-se uma referência dupla: tanto seria sinal da graça divina na
pele de quem a ostentava quanto poderia dizer respeito a distúrbios físicos. No
contexto histórico do livro, a definição de estigma relaciona-se com a desgraça
de quem o ostenta mais do que a sua corporificação.
No
prefácio, o autor apresenta estigma como sendo a situação do indivíduo que
está inabilitado para a aceitação social plena (p. 7) e acrescenta que
foram realizados estudos que ampliaram as categorias de pessoas
“estigmatizadas”.
Neste
primeiro capítulo, Goffman expõe que o estigma surge quando há discrepância
entre a identidade social real e a identidade social virtual, sendo aquela
composta pelos atributos que o indivíduo efetivamente ostenta e a segunda se
relaciona com o que atribuímos coletivamente ao indivíduo, nossas demandas e
expectativas.
O
autor defende a ideia de que o estigma, em si, não é honroso nem desonroso,
porque tem a ver com os estereótipos criados. Torna-se necessário, então, uma
linguagem de relações e não de atributos, uma vez que estes tem a ver com a
identidade social virtual. O autor chama atenção para o fato de que há
atributos que a sociedade constrói que levam ao descrédito.
Goffman
informa que há duas situações referentes ao estigmatizado: quando ele assume
que todos já conhecem a sua característica distintiva ou que ela é identificada prontamente,
ficando na condição de desacreditado ou de desacreditável,
que é quando a característica que o estigmatiza nem é sabida e nem perceptível
de maneira imediata.
Aqui
o autor enumera três tipos de estigma: (1) as abominações do corpo; (2) culpas
de caráter individual e que a sociedade constrói como vontade fraca, paixões
tirânicas ou não naturais, alcoolismo, homossexualismo, comportamento político
radical e (3) estigmas tribais de raça, nação e religião – classe também.
Ao
portador do estigma são atribuídas características que ultrapassam a
característica primeira, a imperfeição inicial, então ao estigmatizado se
atribui comportamentos ou possibilidades de ação que não se confirmam diante de
uma observação mais acurada (na maior parte das vezes). Algumas dessas
atribuições são mágicas, sobrenaturais, como sexto sentido ou percepções.
Também
são naturalizadas como se fossem inerentes aos estigmatizados o defeito e a
resposta como se as ações engendradas fossem parte de sua constituição enquanto
indivíduos portadores do estigma.
O
autor chama atenção para o fato de que muitas vezes os indivíduos exigem
comportamentos dos estigmatizados mas que eles próprios não se veem como
obrigados a se comportarem de tal maneira, revelando, no mínimo, uma
contradição. Identifica, também, indivíduos que não vivem da forma que lhes é
exigida mas que não se importam, aparentemente não ligando para o que se
espera. Exemplos citados por Goffman: ciganos, canalhas impunes etc.
O
estigmatizado pode reagir de duas formas: “corrigindo” a imperfeição que leva à
atribuição do estigma ou dedicando-se a atividades que, cotidianamente, não se
espera que consiga ou se destaque. No primeiro caso, muitas vezes, é passível
de ser enganado (vitimizado) por charlatães e no segundo, exemplifica com
aleijado que dançam em cadeiras de rodas, realizam magistralmente atividades
físicas tidas como impossível diante da condição de estigma a que estão
sujeitos.
Outra
forma de reagir seria utilizando seu estigma para “ganhos secundários”, para
tirar vantagens, como desculpa para o fracasso. Pode também ver o estigma como
sinal de uma espécie de “benção secreta”, atrelando o sofrimento da
condição a possibilidade de ensinar as
outras pessoas, normais, algo sobre a vida. Pode ainda reafirmar as limitações
dos normais, como não perceberem as benesses que estão ao seu redor.
O
maior desafio para o estigmatizado é o contato misto, o contato com as pessoas
normais, o que pode levar a ambos os lados a evitarem contatos. Quando esses
contatos ocorrem, o estigmatizado pode se descobrir inseguro em relação ao
jeito como será recebido/identificado. A pergunta seria, então, em qual
categoria ele será incluído?
Além
dessa insegurança, o estigmatizado pode se sentir como se estivesse sendo
exibido, acarretando nele uma autoconsciência e autocontrole exacerbados. Suas
ações podem ser percebidas como fora do comum, ou seja, extraordinárias. Erros
e enganos porventura cometidos, podem ser classificados como expressão direta
de seu estigma, gerando, muitas vezes, uma condescendência em relação a pessoa
estigmatizada.
No
caso do estigmatizado desacreditado pode ser que, estando entre os normais,
sinta-se exposto a invasões de privacidade, a episódios de curiosidade mórbida
sobre a sua condição ou oferecendo ajuda quando não é necessária. Frases
comuns: minha querida avó conseguiu um aparelho feito o seu; seu cabelo, você
lava como?
A
agressividade pode ser também uma forma de agir ou a ação pode se dar entre o
retraimento, classificado muitas vezes com timidez e a repulsa contra quem se
aproxime – sendo essas atitudes ocorrentes em contatos mistos. O autor afirma
que tais situações podem produzir no estigmatizado angústias relacionais.
Nas
interações mistas há dois possíveis comportamentos: ou se superestima ou
subestima o estigmatizado e quando não há essa atitude, é tratado como uma
não-pessoa, passando a não ser digno de atenção ritualmente constituída
socialmente, de início.
Aqui
o autor afirma que a pessoa estigmatizada, por enfrentar a discrepância entre a
identidade social e a virtual com mais frequência que os normais, tem mais
habilidades, provavelmente, para lidar as situações desse tipo.
O igual e o “informado
São
construídos espaços de sociabilidade que podem fornecer para quem participar desde
doutrinas completas até mesmo estilos de vida, redes de ajuda mútua etc. Segue
a citação:
Uma categoria, então, pode funcionar no sentido de favorecer
entre seus membros as relações e formação de grupo mas sem que seu conjunto
total de membros constitua um grupo –
sutileza conceitual que daqui em diante nem sempre será observada neste livro.
(p. 33)
A
organização em ligas contribui para a visibilização dos estigmatizados através
da noção que se cria, quando são “nativas”, de que superaram limites. Outro
ponto a considerar é de nicho de mercado, criando publicações que divulgam as
formas de viver, suas aspirações, denunciando as condições em que vivem.
Há,
também, os profissionais da categoria, que, quando “nativos” são levados a ter
contatos com outras categorias, quebrando a espécie de “redoma” em que se
vivia, rompendo o “círculo fechado dos iguais” (p. 36). Outro aspecto a ser
considerado é que, por representarem profissionalmente sua categoria, os
nativos podem inserir parcialidades sistemáticas que só são possíveis
por entenderem a situação porque a vivenciam.
Os
informados seriam aqueles que, não sendo estigmatizados, conhecem a situação,
pois são aceitos entre eles, representariam o que no Brasil é classificado como
“entendido”. Podem ser por causa do trabalho que exercem, pelo contato íntimo
com o grupo de estigmatizados.
Outro
tipo de estigmatizado seria aquele que se relaciona com um em situações como
casamento, maternidade, amizade. Estariam numa espécie de lugar em que são
estigmatizados por extensão, de forma indireta. Essa espécie de transferência
justifica a razão de se evitar relacionamentos com estigmatizados ou deles
acabarem, no caso da discrepância adquirida tardiamente.
A carreira moral
Para Goffman, deve-se diferenciar a história
natural das pessoas com um estigma da história natural do próprio estigma, que
seria a história de como foi originada, difundida, mantida e quais alterações
sofreu o atributo que serve de estigma em determinada sociedade. O autor
defende que há fases referentes ao processo de aprendizagem da própria condição
e de conhecimento do Eu.
Uma
delas é a fase em que o estigmatizado incorpora a perspectiva dos normais,
assimilando as crenças da sociedade mais ampla acerca do estigma que lhe é
atribuído. Outra fase é a que se caracteriza por aprender em detalhes as
consequências de ser estigmatizado, o que difere da primeira fase.
Ele
enumera também modelos de aprendizado, totalizando quatro. No primeiro, o
estigma é congênito e a socialização acontece no interior da situação de
desvantagem, levando a pessoa a aprender “desde sempre” como é carregar
determinado atributo.
O
segundo modelo se caracteriza por ter desenvolvido a capacidade de proteger a
criança do mundo através de um grande controle de informação, possibilitando o
contato com outras concepções de sociedade e fazendo-a crer que pertence a esse
mundo, sem ressalvas. Ponto crítico: quando se sai desse modelo e a realidade
se afirma presente.
O
terceiro modelo diz respeito ao se tornar estigmatizado posteriormente, numa
fase avançada da vida ou quando se aprende de maneira tardia que sempre foram desacreditáveis.
Neste caso, faz necessária uma total reorganização de cosmovisão. O quarto
modelo é quando ocorre a socialização em um local diferente daquele que faz
parte na sociedade normal.
Estando em fase avançada da vida, o
estigmatizado enfrentará dificuldades em lidar tanto com novas relações quanto
em manter as anteriores.
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