
A política é um fenômeno social,
e como tal, muda à medida que mudam as sociedades. Na era da espetacularização
de basicamente todos os aspectos da vida humana, a estetização da política
criticada por Black Mirror se aproxima muito mais da realidade do que de uma
distopia. O conceito de “ridículo político”, analisado por Marcia Tiburi,
aborda a política a partir da publicitarização que reduziu sua práxis à
representação vazia de conteúdo, em que a imagem produzida para ser consumida
como mercadoria importa muito mais do que a coerência do discurso produzido.
Sobre esse conceito, Tiburi (2017, p. 10) escreve que
As
cenas do que chamei de Ridículo Político fazem parte da vida pública e
correspondem a uma estetização curiosa da política (ou de uma certa forma de
fazer política que se tornou tendencial) que vive da manipulação
da
imagem e da produção de inverdades de todo tipo. O que chamei de “esteticamente
correto” é o disfarce do ridículo, o esforço para estar na linha do padrão
estético, que invade as relações em nível micro e macropolítico. O
esteticamente correto se dá em cumplicidade com toda uma cultura de naturalização
do ridículo na qual estamos submersos.
Não é difícil
perceber as semelhanças entre o conceito filosófico de “Ridículo político” e as
ações de Bolsonaro, assim como as do personagem com a personalidade do deputado,
que ainda consegue inovar em um aspecto: aparece com soluções simplistas e
imediatistas para problemas que ganham rápida repercurssão social, como o
problema da segurança pública – ainda que seja, pra dizer o mínimo, incoerente
para alguém que passou anos no Congresso Nacional sem apresentar nenhuma
proposta viável para todos esses problemas, de repende possuir todas as
soluções que irão magicamente resolvê-los. Diante disso tudo, resta entender: o
que motiva a escolha Bolsonaro?
A popularidade da figura política
de Bolsonaro é baseada em dois aspectos principais: na ostentação de uma fala
abertamente favorável a ações violentas, como tortura e assassinato político, e
na defesa da repressão absoluta de tudo aquilo que seja desviante do modelo de
cidadão branco, heteronormativo, cristão e possuidor de poder aquisitivo. O
apelo discursivo de Bolsonaro, portanto, é de cunho moralista. Essa é uma
característica importante de se destacar, pois envolve um processo de negação
como forma de afirmação. A contradição é apenas aparente, pois, ao negar algo
ou alguém, implicitamente aponta-se para si mesmo como o contrário do que foi
negado, e é por isso que o apontamento negativo se dá sempre contra o outro, e
nunca para si mesmo. Dessa forma, ao apontar o outro como imoral, aponta-se
para si mesmo como exemplo de moralidade, pois, nesse raciocínio, a autoridade
acusatória só pode ser conferida a quem ocupa a posição “moralmente desejável”,
o que leva a percepção de que a primeira motivação para o discurso moralista é
o ego. Uma personalidade egocêntrica tende, por sua vez, à rejeição radical de
tudo aquilo que diverge de si, seja essa divergência de aspecto ideológico,
comportamental, religioso, cultural, etc, o que caracteriza uma postura
autoritária.
Como já disse Jessé Sousa, a classe média brasileira, que se autoproclama a representante da
moralidade e dos chamados “cidadãos de bem”, usa essa moralidade de maneira convenientemente
seletiva fazendo “vista grossa” diante da corrupção dos setores representantes
do status quo brasileiro, quando não
defendendo essa corrupção seletiva abertamente (quem não se lembra dos cartazes
equiparando sonegação de impostos à legítima defesa?). Para o sociólogo, essa
legitimação seletiva da corrupção é um reflexo do ódio de classe que esses
setores sociais ostentam, ódio esse que está ligado à mentalidade escravista
que ainda permanece na sociedade brasileira, até então reprimida e agora
exposta viceralmente nas ações e nos discursos, potencialmente ou abertamente,
fascistas.
Aqui se volta ao processo de
formação da socidade brasileira, marcado por mais permanências do que rupturas
com a lógica colonial, e que perpetua até hoje os aspectos mais violentos das
“mentalidades Casa Grande”: o desejo de segregação social da “ralé brasileira”
(retornando mais uma vez à Jessé Souza para tomar emprestado o conceito criado
por ele) e a extensão dessa segregação às estruturas do Estado e do sistema
jurídico.
Nesse sentido, é válida a
percepção de que as ideologias, entendidas como o conjunto de ideias
socialmente construídas que estruturam as formas coletivas de percepção e
apreensão do mundo, influenciam a produção de sentimentos – sendo importante
ter em mente a diferença entre sentimento e emoção: sentimentos são produtos
culturais e estão associados às formas como fomos ensinados a reagir diante das
diversas situações que se apresentam no meio coletivo, como ciúme e ódio,
enquanto que as emoções existem naturalmente como reações biológicas a
situações externas, como se dá quando experimentamos o medo diante de um perigo.
Assim, observa-se que predomina no cenário político atual o uso do discurso de
ódio como um instrumento de construção
do sentimento de ódio, sentimento este que está ligado ao desejo de
reprimir e perseguir a oposição, e que é legitimado ideologicamente a partir do
discurso da moralidade que normalmente acompanha o dicurso de ódio.
Ao pensar sociologicamente sobre
esse processo, é fundamental a compreensão de que as mentalidades e os
comportamentos de indivíduos que vivem em sociedade são permeados por relações
de poder e que essas relações incluem o poder de criminalizar indivíduos. Ou
seja, nas sociedades, a definição de criminalidade não existe naturalmente, mas
perpassa o poder de atribuição de status.
Status, em sociologia, significa a condição socialmente construída a que o
indivíduo se encontra submetido, ou a posição social que ele ocupa, tendo sido
esse conceito desenvolvido por Max Weber para analisar como pertencimento
social, prestígio e poder se estruturam na sociedade. Assim, a atribuição do
status social de criminoso é dada por quem detém, na sociedade, poder. Como
consequência, a construção dessa condição social pode servir a interesses
específicos dos grupos que detêm o poder para a obtenção de quaisquer objetivos
que sejam desejáveis a esses grupos, inclusive objetivos políticos.
É por esse motivo que o
apontamento da incoerência, da falta de qualquer tipo de consistência e até
mesmo de mentiras na fala de Bolsonaro
não surte nenhum efeito sobre a imensa maioria dos seus eleitores: porque não
se trata de política em si, mas de sentimentos. Quando se mostra que o deputado
representa muito mais da velha política do que qualquer outra coisa, que passou
anos usufruindo do salário e dos benefícios de deputado sem praticamente fazer
nada no Congresso, que não apresenta projeto de governo nenhum e que se nega a
debater sobre qualquer coisa – deixando óbvio seu despreparo para ocupar não só
a presidência da república, mas qualquer cargo político – o que se observa é
que tudo isso simplesmente pouco importa para quem apoia o que ele representa. Pouco
importa o fato de que Bolsonaro esteve no PP, partido que ocupa o topo da Lava
Jato em número de políticos investigados, ou o fato de que ele fale em “bandidos
de estimação” quando recebeu dinheiro de propina da JBS através do partido e
ainda tenha tentado justificar o ato indagando “qual partido que não recebe
proprina?” e tentou uma aliança política
com o PR, partido cujo líder foi condenado pelo envolvimento com o mensalão e
que tem vários deputados investigados pela Lava-Jato.
Os fatos não importam porque o
que se busca no discurso de ódio não é a verdade, mas a legitimação da
violência de quem já tinha o desejo por ela reprimido em si. O que a fala e a
própria figura de Bolsonaro representam é a legitimação de todos os racismos,
homofobias, machismos, facismos e ódio de classe que, se antes não se mostravam
porque “pegava mal”, agora encontram o cenário construído para se mostrar sem o
mínimo pudor. A recusa a qualquer pensamento baseado na lógica ou até mesmo no
bom senso mais básico se dá porque o discurso de ódio não atinge a
racionalidade civilizacional, mas sim os afetos políticos do indivíduo, afetos
esses que estão ligados ao desejo de aniquilamento de tudo aquilo que é em
algum aspecto desviante do que se considera moralmente aceitável (mesmo quando
essa moral é questionável, afinal de contas não estamos tratando de coerência
entre ação e discurso, mas de sentimentos reprimidos). Assim, para que o
discurso de ódio seja eficiente, é necessário que se evite ao máximo possível o
confrontamento com qualquer argumentação minimamente racional.

Um dos grandes problemas dessa
lógica discursiva é que, em regimes políticos autoritários, como os que são
elogiosamente defendidos por Bolsonaro, o status social de criminoso pode ser
atribuído arbitrariamente à qualquer um que questione de alguma maneira ou que
represente de alguma forma um obstáculo para a efetivação dos interesses do
poder instituído. Historicamente, regimes autoritários transformam todo
discurso de questionamento da ordem em crime e os indivíduos que sustentam
esses discursos perdem seu nome, passando a ser chamados de “terroristas”,
“bandidos” ou “subversivos”, em um processo de apagamento de qualquer
identidade subjetiva para o enquadramento em uma categoria política. A partir
daí o que ocorre é o uso sistemático da violência como política de Estado,
através da racionalização do processo de repressão e aniquilamento dos chamados
“inimigos do Estado”.
Foi esse o processo colocado em
prática pela Ditadura Militar brasileira, implantada a partir de 1964. A partir
da criação de um poderoso aparato de coleta de informação, o governo militar
desenvolveu uma logística de matar pessoas que se mostrou uma das mais
eficientes. O funcionamento da tortura e do assassinato como política de Estado
envolveu a captação de recursos financeiros fornecidos em boa parte por
empresários, a sistematização de métodos de desaparecimentos de mortos
políticos, a partir da queima de corpos, da retirada da arcada dentária e de
digitais, impossibilitando a identificação, e o desenvolvimento de técnicas de
tortura que permitissem infligir a maior dor física e a maior agonia
psicológica possível sem matar, de modo a aniquilar qualquer capacidade de
resistência da oposição. Ao contrário do que se pensa, a violência da ditadura
não se direcionou apenas aos grupos que optaram por recorrer à resistência
armada, mas à qualquer indivíduo a quem fosse de interesse do governo militar
atribuir o status de inimigo do Estado. Sobretudo durante o processo de
colonização - que promoveu a exploração de recursos naturais por empresas
privadas em territórios ainda pouco povoados - fez-se necessário o controle e a
eliminação de grupos sociais locais das áreas de interesse (áreas para
empreendimentos de agropecuária, mineração e corte de madeira). Lilia Moritz
Schwarcz (2015, p.463) escreve sobre o “Relatório Figueiredo”, o mais
importante documento que relata a ação da ditadura sobre tribos indígenas, que
O resultado é estarrecedor: matanças de
tribos inteiras, torturas e toda a sorte de crueldades foram cometidas contra indígenas
brasileiros por proprietários de terra e por agentes do Estado. Figueiredo fez
um trabalho de apuração notável. Incluiu relatos de dezenas de testemunhas,
apresentou centenas de documentos e identificou cada uma das violações que
encontrou: assassinatos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo,
apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena. Seu relatório denuncia
– e comprova – a existência de caçadas humanas com metralhadoras e dinamite
atirada de aviões, inoculações propositais de varíola em populações indígenas
isoladas e doações de açúcar misturado a estricnina
Além das populações indígenas,
existe uma vasta documentação que comprova a mesma lógica operacional de
tortura e genocídio contra sem-terras, mineradores e comunidades ribeirinhas.
Vale ressaltar que esses eram indivíduos que não possuíam quaisquer ligações
com comunistas ou com grupos de oposição esquerdistas. Esses exemplos demostram
a contradição da lógica de “perseguição do inimigo” presente no discurso de
Bolsonaro: em sistemas autoritários, quem define quem é o inimigo? O que se
observa, portanto, é a construção da
ideia de um inimigo que serve aos interesses de quem detém poder.
Partindo desse raciocíonio,
levanta-se uma outra questão: em regimes democráticos, discursos pró-ditadura devem
ser aceitos, em nome da liberdade de expressão? A liberdade deve ser limitada
em um regime que a tem como seu fundamento mais básico? Não existe solução
simplista nos processos democráticos, e a resposta para esse impasse não foge a
essa regra: sim, as liberdades devem ter limitações em regimes democráticos, e
essa resposta não pode ter a pretensão de apresentar uma solução simples para
esse problema complexo. Nenhum sistema que tem como fundamento estrutural a
garantia de liberdades pode admitir uma liberdade absoluta, pois que o uso
dessa liberdade pode, em algum momento, ameaçar a própria democracia e o seu
fundamento básico. Em outras palavras, entende-se que a ideia de uma liberdade
ilimitada pode – e em algum momento vai, a história não permite discordar – gerar situações em que as liberdades
democráticas podem ameaçar a existência da própria democracia e das liberdades
instituídas por ela. As liberdades, pois, devem existir até o limite em que não
ameacem a Lei-Maior que estabelece os princípios que permitem a democracia
existir enquanto tal.
Nessa perspectiva, pensando a partir
das teorias política e ética de Immanuel Kant, filosófo iluminista, percebe-se
que, para ele, na organização da vida em sociedade, o indivíduo tem a sua
liberdade limitada pela ação reguladora e pelo aparato jurídico do Estado,
exercida através das suas instituições, e seria dentro dessas condições que a
liberdade individual deveria ser exercida. Kant aponta que cada indivíduo só
pode exercer a liberdade que reconhece igualmente a todos os outros, de modo
que essa prática é ela mesma uma solução para as contradições da vida em
sociedade. Consequentemente, a liberdade é limitada pelas leis civis
instituídas a partir do contrato social, não se confundindo, entretanto, com a
obediência alienada e inquestionável, mas sim com a possibilidade de reflexão
crítica, inclusive da crítica sobre o próprio Estado, desde que em conformidade
com o poder normativo democrático. Agir segundo esse princípio seria, do ponto
de vista da ética kantiana, uma ação por dever, e este dever ético estaria, por
sua vez, fundamentado na garantia da dignidade dos seres racionais que, fazendo
uso de sua liberdade, instituem leis a si mesmos.
Percebe-se, a
partir daí, que uma outra característica da democracia é a legitimidade do conflito de ideias, isto é, a aceitação da falta de
consenso entre grupos que convivem em sociedade. A democracia, portanto,
incorpora a negociação dos impasses
sociais, de maneira que nenhum grupo possa impor a todos os outros seus
desejos, mas que, a partir do diálogo e da negociação, se possa abdicar de
algumas das vontades particulares em prol de projetos de sociedade que
contemplem a coletividade social. Seria a aplicação de uma lógica próxima da
Justa Medida aristotélica do “nem tanto, nem tão pouco”, uma vez que os
diversos grupos de indivíduos nem poderiam impor totalmente seus desejos aos
demais, nem precisariam abrir mão de absolutamente todos esses desejos em
função de outros. Ao observar, portanto, a fala de Bolsonaro de que “minha
proposta é defender direitos da maioria e não da minoria. (...) as minorias têm
que se calar, se curvar à maioria”, percebe-se que ela reflete uma postura
absolutamente antidemocrática. Porque, então, se diz que Bolsonaro defende
ideias fascistas? Porque regimes fascistas não admitem a discordância de pensamentos. Nesses regimes, é imposto um conjunto
de ideias e um projeto de sociedade que passam a valer como verdades
incontestáveis, sendo qualquer divergência reprimida a partir do uso, ou da
ameaça de uso, da violência.
Com base nisso
tudo, a conclusão é a de que em qualquer sociedade que se pretenda
verdadeiramente democrática, não pode haver espaço para o discurso
pró-ditadura, para o discurso que fala abertamente em quebra das regras
democráticas, em “metralhar” a oposição política e em reprimir minorias
sociais. A escolha ou a recusa à Bolsonaro, portanto, vai muito além da recusa
ou escolha de um partido político, trata-se do modelo de sociedade que as consciências
individuais desejam. Resta apenas a sua reflexão, leitor que chegou até o final
desse texto, sobre qual lado sua consciência está e, muito mais do que isso:
qual o preço que você está disposto a pagar pela sua escolha – ou pela sua
recusa?
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Thais Almeida, graduanda de História e monitora do curso Pense Fora da Caixa - Filosofia e Sociologia para o ENEM
Muito bom. Parabéns! Há uns dias estou assistindo às suas aulas pelo youtube, que foi o que me trouxe até aqui. E já estou encaminhando o link desse blog e do seu canal no youtube para todos os meus grupos sociais.
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