Freud, ao pensar a civilização como
aquilo que diferencia o ser humano dos outros animais - não fazendo distinção,
portanto, entre civilização e cultura - afirma que o mal-estar é uma realidade
inevitável de todo indivíduo que vive em sociedade. A vida social implicaria,
para ele, uma série de proibições repressoras de instintos e desejos naturais. Pensando
a partir da perspectiva da própria vida em sociedade e das contradições que ela
produz, sobretudo na era da superexposição que a revolução tecnológica
proporcionou, é possível estabelecer uma relação entre uma vazão excessiva de
pulsões relacionadas à violência, e até mesmo a um certo grau de sadismo, e a
construção de discursos sociais que naturalizam ações violentas.
Para estabelecer essa relação é
fundamental, ainda, a compreensão do indivíduo a partir dos elementos sociais
que o constituem. Um dos aspectos que definem o
caráter humano é a capacidade de pensamento, ou como diz Gilberto Gil na letra
da música, “pensamento, mesmo, fundamento singular do ser humano”. Mas foi a
partir do momento que o homo sapiens
começou a refletir sobre a realidade ao seu redor, ou seja, a partir do momento
em que o homem foi capaz de atribuir significação
simbólica à sua realidade, e a comunicar essa significação a outros, que a
nossa espécie abandonou o reino da natureza e passou a viver o mundo da cultura.
No entanto, essa significação e sua comunicação só é possível através de um
conjunto de símbolos, e a esse conjunto de símbolos damos o nome de linguagem.
O conhecimento humano, portanto, nada mais é do que uma construção de sentidos
que só é possível através da linguagem. Nessa perspectiva, a linguagem faz
parte da estruturação do indivíduo enquanto sujeito, uma vez que só podemos
construir qualquer significação sobre qualquer coisa a partir do momento que
damos um nome a essa coisa, ou ainda, como pensou o linguísta Benjamin Lee
Whorf, “a
linguagem não é apenas o modo como uma pessoa se comunica, mas como constrói a
casa da sua consciência”.
No entanto, as sociedades humanas são mediadas
por relações de poder, seja o poder no âmbito no macrofísico, ou nas relações
de dominação que se estabelecem no âmbito do microfísico, observadas e
teorizadas por Foucault. Assim, pode-se pensar que quem detém os meios de
construir e disseminar discursos, ou seja, quem domina a produção da linguagem,
detém poder. Somando-se isso à capacidade de disseminação em massa de
informação de forma muito rápida e à mercantilização que o Capitalismo estendeu
a todos os elementos da vida social, o resultado foi um fenômeno que prejudica
a assimilação crítica e a reflexão autônoma acerca dos fatos do cotidiano: a
espetacularização do senso comum.
Sociologicamente, o espetáculo consiste em um
conjunto de relações sociais mediadas pela construção de sentimentos a partir da apresentação
espetacularizada e ilusória de algo. Associa-se esse conceito, geralmente, à
produção de imagens, no entanto, também no âmbito dos discursos ocorre a
produção de espetáculos. Dessa forma, os discursos sociais assumem também uma
característica mercadológica, na medida em que buscam “vender” uma ideia, ou
ainda, um modo específico de entendimento da sociedade, da política, das leis,
etc. A partir daí, ganham visibilidade e repercurssão os discursos do senso
comum, que passam a aparecer de forma espetacularizada através de comentários
em redes sociais, de videos compartilhados nas mídias e de postagens que são
exibidas de forma polemizada e repetidamente compartilhadas e curtidas. Conceitua-se
senso comum como uma forma de entendimento da realidade que, diferentemente do
senso crítico, se baseia em uma percepção superficial e imediatista, dispensando
a reflexão aprofundada, não se preocupando com o rigor lógico e conceitual das
ideias emitidas. Considerando, ainda, que o aumento progressivo da
disponibilização de informações não implicou o aumento da capacidade humana de
assimilar qualitativamente essas informações, é estimulada uma percepção
parcial das informações cotidianas. A partir disso, passou a permear na vida
social, e mais fortemente nas redes sociais, a legitimação de ideias baseadas
no senso comum para tratar de questões sociais e políticas complexas. Desse
modo, não é preciso nenhuma reflexão crítica, estudo ou análise intelectual
porque se convencionou a emissão de opinião baseada em achismos e em
reducionismos simplistas.
Nesse sentido, o conceito de Indústria Cultural, criado por Adorno e
Horkheimer, auxilia o entendimento da repercurssão exarcebada que o uso do
senso comum vem tendo nos espaços sociais, sobretudo nas mídias virtuais, pois
evidencia o aspecto de mercadoria da produção de pensamentos. É preciso que as
ideias sejam “vendáveis” para que possam ser consumidas de forma massificada e
rápida, o que implica a necessidade de tornar as ideias facilmente assimiláveis
a partir da retirada de qualquer caráter crítico e questionador. Como
consequência, o senso comum, apresentado como espetáculo para ser consumido,
não é informativo, mas um conjunto de raciocícios rasos e intelectualmente
problemáticos – quando não simplesmente absurdos – transmitidos para serem
reproduzidos de forma passiva, muitas vezes a partir de palavras de ordem e de
trocadilhos de memorização fácil.
É essa a lógica discursiva que
fabricou o discurso de ódio que permeia praticamente todas as esferas da vida
em sociedade - e que serve inclusive a políticos que constróem sua popularidade
em cima dele – e transforma ações violentas em elementos cotidiados
banalizados. É este, então, o ponto central da reflexão desse texto: a construção do discurso de ódio, a partir
do uso do senso comum, como instrumento ideológico que legitima o uso da
violência. É fundamental, para entender os acontecimentos polêmicos
recentes envolvendo discurso de ódio e política - que foram desde parlamentares
incitando mais massacres em prisões, passando por homenagens em rede nacional a
estupradores sociopatas e por chamadas para “metralhar a petralhada”, até a
tentativa de assassinato de candidatos à presidência da república – o uso do
discurso de combate a um suposto “mal social” na construção do sentimento de
ódio para justificar a retirada de direitos, a repressão total e até mesmo a
execução de pessoas ou grupos sociais politicamente distoantes.
O que se observa, a partir dessa
lógica, é a busca pela sensação de prazer proporcionada pela aplicação de
“castigos” com requintes de crueldade, pelo linchamento exibido de forma
espetacularizada e pela fetichização da tortura, por meio da transferência do
poder de aplicação de punição do Estado para qualquer um que se disponha a
aplicá-la em nome do chamado cidadão de bem. O discurso de ódio expressa o
desejo de que, entre a acusação da prática um crime e a aplicação de uma
punição o mais violenta possível, estejam dispensadas quaisquer garantias
legais, uma vez que as mesmas tornam-se meras inconveniências para quem deseja
satisfazer o desejo imediatista de vingança pessoal. Não é mais necessário se
reunir em um coliseum para assistir ao espetáculo da violência contra
indivíduos rotulados como barbáros, ou se deslocar para apreciar a morte na
fogueira de indivíduos considerados subversivos, basta assistir à tortura
punitivista pela tela do smarthphone.
Todavia, o que o reducionismo
simplista do senso comum que está na base do discurso de ódio distorce é a
percepção de que, por desconsiderar a profundidade das causas dos problemas
estruturais da sociedade brasileira, já que recusa o uso da reflexão crítica,
dá apenas uma ilusão de solução, tendo na prática o efeito contrário. Para além
de uma concepção maniqueísta de Justiça social, sociedades que se pretendem
democráticas só encontram as soluções para os seus problemas na radicalização
da própria prática democrática. Qualquer alternativa que se baseie no discurso
de que é necessário “tomar medidas antidemocráticas para salvar a democracia”
vai sempre tender a um totalitarismo que só serve para alimentar o próprio
sistema, sistema esse que lucra com a violência que se abate sobre todos – sobre
uns mais do que sobre outros, mais ainda assim, que atinge a todos em alguma
medida. No final das contas, retornando a Freud, a sensação de satisfação das
pulsões sádicas mais reprimidas em prol da existência da Civilização é sempre
efêmera, e até mesmo os maiores disseminadores do discurso de ódio acabam sendo
engolidos pelas contradições do discurso que defendem.
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Thais Almeida, graduanda de História e monitora do curso Pense Fora da Caixa - Filosofia e Sociologia para o ENEM
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Thais Almeida, graduanda de História e monitora do curso Pense Fora da Caixa - Filosofia e Sociologia para o ENEM