Aí
a pessoa recebe uma ligação, pede licença para atender e você se
corrói de curiosidades ou a pessoa tá toda risonha escrevendo no
whatsapp e quando você aparece, sai do aplicativo, fica séria, olha
para você e fala: “diz!” Ou ainda: tem uma pessoa nova na turma
e começa a conversar com seu amigo, aquele de todas as baladas e
horas de estudos (porque ninguém é de ferro, né?) e você olha e
pensa: “oxe, oxe, oxe, quem é esse otário?”
Tá
rindo, né? Pois bem, o que motiva essa reação em todas as
situações descritas acima é o ciúme. Quando se trata de ciúme
geralmente se trata também de amor, sendo que o ciúme é entendido
como prova de amor, como a confirmação que a outra pessoa (objeto
de ciúme) é amada, desejada, que não se quer perder. Pois bem,
vamos com a filosofia pensar um pouquinho sobre essas perspectivas. O
primeiro passo deve ser conceituar, entender o conceito do que
pensamos e mesmo sentimos (se é que é possível neste último
caso).
O
ciúme é uma paixão e você deve se perguntar se paixão não é
outra coisa, não é o que sentimos quando queremos muito estar com
alguém, desejamos o corpitcho de tal pessoa nu e várias referências
a nudez e o que se pode fazer estando nu com alguém. Esse
entendimento, bem popular, de paixão, entretanto, é bem recente e
muitas vezes diferenciado de amor. Não trataremos aqui dessa
aparente(?) (ou real?) separação. Ficaremos no ciúme e o motivo de
ser uma paixão.
Para
os gregos, paixão é uma
força ou uma ação que tem sua origem de fora de nós. Essa força
ou ação impede que nós ajamos, criam obstáculos para o que
costumamos fazer de maneira tranquila e calma. Estar sujeito às
paixões, nesse sentido inicial para os gregos, era estar
impossibilitada de agir. As paixões nos perturbam e nos conduzem de
maneira contrária à razão que, estaria, assim, no comando de
nossos atos. Nessa perspectiva, paixão é algo negativo, que traz
problemas, melhor é afastar-se
dela, silenciá-la.
Sendo
o ciúme uma paixão, isso quer dizer que quando se está tendo um
“ataque de ciúmes” o que pode ser entendido é que a pessoa em
questão é vítima de uma perturbação em sua alma, de um tremor
íntimo que arrasa toda a sua capacidade de agir “como um ser
humano normal”. Você já deve ter ouvido de alguém que surtou de
ciúme a frase: “eu estava ‘fora’ de mim”. Esse descontrole
já produziu dezenas de milhares de vídeos de pessoas passando
vergonha em público porque o/a companheiro/a teve um desses ataques.
Aqui
vale mencionar o senso comum que atribue às mulheres uma
predisposição maior que os homens para sentir ciúmes. Mais
uma pérola do pensamento sexista que apaga as manifestações
violentas de homens que assassinaram suas companheiras ou
ex-companheiras porque acreditaram que ela “estava se ‘oferecendo’”
para os ‘caras’ na festa (ou em qualquer situação)” e não
aceitaram o fim do relacionamento, respectivamente. Agora tem que ser
em maiúscula: HOMENS E MULHERES TÊM A MESMA CAPACIDADE E
POSSIBILIDADE DE MATAR POR CAUSA DE CIÚMES, mas quando é um homem
que mata, geralmente se diz que foi por amor.
Nesse
ponto é fundamental ter em mente que não temos educação
sentimental, educação para lidar com as paixões que, como está
descrito acima, vêm de fora e nos perturbam a capacidade de agir sob
o domínio da razão. O projeto político pedagógico da maior parte
(para não falar de todas) das instituições de ensino se
ocupa de conhecimentos matemáticos, de química, de física, de
biologia, sobre as regiões do planeta, de seus rios, de como viviam
os seres humanos em outras épocas e lugares, de forma que temos
estudantes que ingressam na vida adulta sabendo usar log de base 10,
enumeram as causas da primeira guerra, a mundial mas que não sabem
lidar com a panela de pressão que são sentimentos oriundos de
paixões como a ira, o medo e
o ciúme etc.
Nesse
hiato existente, quem desempenha esse papel? Essa pergunta deve ser
feita porque há uma educação sentimental vigente e ela atua sobre
cada um/a de nós sem restrições. O cancioneiro popular faz esse
papel de sensei das
emoções, de guia de sentimentos, de farol de afetos. Há um número
quase infinito de canções que nos guiam na nossa formação
emocional. Tanto é válida essa afirmação que
peço para você que está
lendo esse texto agora que pare e pense em uma música que você
considera a música de sua vida, aquela que deve representar sua
história de vida, seus sentimentos.
É
muito provável que seja uma “canção de amor”, independente do
gênero, paixões como o ciúme estão presentes em várias músicas
que foram e ainda são sucesso por todo o território nacional.
Algumas são sucesso mundial (ocidental, pelo menos). Não é exagero
afirmar que os nossos sentimentos, e
como lidamos com eles, foram orientados em grande medida pelo que
cantoras, cantores, grupos musicais reproduziram e reproduzem ainda
hoje. Continue a leitura e confira alguns exemplos.
Roberto
Carlos, aquele do
especial clássico de fim de ano, tem uma das mais conhecidas canções
sobre a temática, mas que na voz do grupo Raça Negra tem mais
sentimento (minha opinião tem sim, tem sim, tem sim!)
Se
você demora mais um pouco
Eu
fico louco esperando por você
E
digo que não me preocupa
Procuro
uma desculpa
Mas
que todo mundo vê
Que
é ciúme
Ciúme
de você
Ciúme
de você
Ciúme
de você
Se
você põe aquele seu vestido lindo
E
alguém olha pra você
Eu
digo que já não gosto dele
Que
você não vê que ele
Está
ficando "demodê"
Mas
é ciúme
Ciúme
de você
Ciúme
de você
Ciúme
de você
Esse
telefone que não pára de tocar
Está
sempre ocupado quando eu penso em lhe falar
Quero
então saber logo quem lhe telefonou
O
que disse, o que queria, e o que você falou
Só
de ciúme
Ciúme
de você
Ciúme
de você
Ciúme
de você
Se
você me diz que vai sair sozinha
Eu
não deixo você ir
Entenda
que no meu coração
Tem
amor demais, meu bem e essa é a razão
Do
meu ciúme
Ciúme
de você
Ciúme
de você
O
rock também tem contribuição nesse processo de educação
sentimental, escute e leia a letra de Ciúme,
do grupo Ultraje a Rigor:
Eu
quero levar
Uma vida moderninha
Deixar minha menininha
Sair
sozinha
Não ser machista
E não bancar o possessivo
Ser
mais seguro
E não ser tão impulsivo
Mas
eu me mordo de ciúme
Mas eu me mordo de ciúme
Meu
bem me deixa
Sempre muito à vontade
Ela me diz que é
muito bom
Ter liberdade
E que não há mal nenhum
Em
ter outra amizade
E que brigar por isso
É muita crueldade
Mas
eu me mordo de ciúme
Mas eu me mordo de ciúme
Mas eu me
mordo de ciúme
Mas eu me mordo de ciúme
Meu
bem me deixa
Sempre muito à vontade
Ela me diz que é
muito bom
Ter liberdade
E que não há mal nenhum
Em
ter outra amizade
E que brigar por isso
É muita
crueldade
Hiê! Hiê! Hiê!
Mas
eu me mordo de ciúme
Companhia
do Calipso também
cantou essa paixão em
Morrendo de Ciúme:
Ouvi
alguém dizendo que você andou falando em mim sem
perceber.
Depois
que tomou todas por aí.
Estou
sabendo que até chorou.
E
quando a gente chora isso é amor.
Por
que é que você não que assumir.
Assuma
que me ama eu quero ouvir.
Tá,
você tá é morrendo de ciúmes.
Porque
não deixa logo esse costume de querer
enganar
seu
coração.
Quer
dar uma de difícil.
Eu
te conheço.
Depois
não quebre a cara pague o preço.
Porque
não deixa dessa indecisão.
Você
que se matar de solidão.
O
tal sertanejo universitário, na voz de Edu
Chociay, garante aos
ouvidos ávidos por declarações dessa natureza, a música Ciúme:
Sim,
assumi que é ciúmes sim
Eu
fico tão fora de mim
Tudo
é ameaça pra tirar você de mim
Também,
tenho medo de ficar sem
De
perder quem me faz tão bem
Porém
Você
desaba e chora
E
eu reflito na hora
O
que eu tô causando pra você
Eu
vou mudar meu jeito
Curar
o meu defeito
Olhando
nos seus olhos vou dizer
Me
perdoa, é que
É
que eu te amo mais
Que
a mim mesmo, mas
Eu
só tenho ciúmes
Ciúmes
Ciúmes
Eu
não quero ninguém
Querendo
te querer
Eu
só tenho ciúmes
Ciúmes
Ciúmes
Você
pode fazer a sua lista de músicas sobre ciúme e analisá-las a
partir do que abordaremos aqui. Cuidemos da vida então.
Essa
paixão, o ciúme, é ambígua pois tanto pode apresentar valores
positivos quanto negativos, ou seja, se considerarmos que quando
gostamos de alguém, cuidamos, então temos resultados positivos
quando somos tomados por ciúmes. É como se virássemos guardiãs,
sempre dispostas/os a manter a pessoa bem, viva, feliz etc.
Porém,
meio que por um passe de mágica, quem antes cuidava passa a,
digamos, “cuidar demais”. Restringir a liberdade de locomoção,
reduzir as companhias, mesmo as mais antigas amizades, anteriores ao
próprio relacionamento. Vale lembrar que não se trata apenas de
relacionamentos ditos amorosos, mas de qualquer relação entre
humanos.
O
que pode levar o ciúme a sair do cuidado e passar a ser opressor?
Segundo René Descartes, o egoísmo e a insegurança são o
ponto de partida de toda relação ciumenta. Quem é ciumento/a
carrega em si um desejo de possuir sozinha/o seja a companhia, a
conversa ou mesmo a intimidade e a partilha de sentimentos mais
profundos. Daí querer monopólio sobre alguns assuntos da vida da
pessoa em questão não querendo, assim, que conviva com outros
indivíduos.
No
que diz respeito à insegurança, a pessoa ciumenta, muitas vezes,
não se sente merecedora do amor que recebe, seja de amizades ou da
pessoa com quem priva de mais intimidade. Nesse sentido, a pessoa
ciumenta se sente “o cocô do cavalo do bandido”, indigna de
qualquer consideração. Como esse indivíduo lida com essa
percepção? Surtando!
Perturbadora,
mas muito válidas, também são as perspectivas de Sigmund Freud,
a saber: sente-se ciúme porque se rivaliza com alguém. A pessoa
ciumenta sente que está concorrendo com outras no que diz respeito
às atenções e amores de quem a acompanha. Até aí parece de boas,
mas a questão não é sobre disputa e sim sobre como a pessoa se vê
e a importância que atribui a si.
Freud
ainda nos oferece a abordagem do ciúme que tem como ponto de partida
a projeção do que a pessoa ciumenta sente. Funcionaria assim: quem
afirma que a pessoa está “dando bola” para outras, está
flertando, paquerando, rolando um “lesco-lesco” na verdade é ela
quem deseja isso, quem quer “pular a cerca” é ela. Não
conseguindo perceber ou não querendo aceitar esse desejo que há em
si, a pessoa aponta para a/o companheira/o. Seria algo do tipo: eu
quero, mas não assumo e digo que é minha companhia que quer.
Agora
a terceira forma de ciúme impacta de maneira autoexplicativa: quem
sente ciúme seria uma pessoa homoafetiva reprimida uma vez que ela é
quem deseja o/a outro/a, o indivíduo que rivaliza supostamente com
ele. Pensando em relações heteronormativas, seria algo assim: o
namorado ciumento teria desejos por outros homens mas nega a si que
os sente. A namorada ciumenta, idem. Tá pensando agora sobre isso,
né? Há um debate intenso sobre essas possibilidades explicativas e
é importante lembrar que são possibilidades e não verdades
absolutas ou inquestionáveis.
COMO
LIDAR?
O
pensamento filosófico não dá receita de bolo, mas indicações
para que possamos encontrar as possíveis chaves para uma vida mais
consciente, o que não quer dizer uma vida livre de sofrimentos, mas
uma vida com mais autonomia até para lidar com o que dói. O ciúme
faz sofrer tanto quem tem os ataques quanto quem sofre, quem é
“objeto” de ciúme.
Quando
o ciúme deixa de ser expressão de cuidado e passa a ser negativo, é
fundamental que a pessoa ciumenta aceite que ela pode estar se vendo
como alguém sem valor, sem importância. Uma possível saída é
atribuir um valor a si que seja equivalente ao que teme perder, ou
seja, quando se está seguro de si, seguro sobre quem se é, seguro
do valor que tem, há um perigo infinitamente menor de ser tomado
pela paixão que é o ciúme.
Isso
não quer dizer que não se vai sofrer ou que se está imune às
dores causadas por perdas ou abandonos mesmo porque para ser
abandonada/o basta ter companhia. A Escola Estoica pode nos
ensinar, se permitirmos, que só deveríamos nos ocupar do que
depende de nós para acontecer. Quando sentimos ciúmes estamos sob
efeitos externos que reduzem, que minguam a nossa capacidade de,
conscientemente, tomar decisões racionalmente.
Podemos
sentir ciúmes, podemos sim, mas após sentir devemos procurar
entender o que essa paixão tem a dizer sobre nós, afinal só
controlamos o que nós fazemos. Os atos de outras pessoas (as que
afirmamos amar) dizem respeito unicamente ao que as motiva. Negar a
paixão do ciúme é não dar um importante passo rumo ao
autoconhecimento, mas se deixar tomar pelo ciúme é abrir mão do
autodomínio que pode nos garantir autonomia e soberania de si. O que
fazer, então? A justa medida originada do autoconhecimento parece ser a melhor resposta.
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