“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é “. Será?
Colocar em dúvida o trecho da canção Dom de iludir, imortal na voz de Caetano
Veloso, causa estranhamento. Se observarmos ao redor e prestarmos atenção nas
conversas de muitas pessoas, esse pretenso saber de si é repetido muitas vezes
em frases como:
- (…) porque eu sou assim...
- (…) ah, meu filho, eu me conheço...
- (…) aaaah, se fosse comigo ia ver,
porque eu sei como eu sou e...
Mas, se pudéssemos averiguar a vida
dessas pessoas que tão fortemente esbravejam esse autoconhecimento, talvez
(talvez mesmo?) nos decepcionássemos com as contradições apresentadas.
Quem falou que “mandaria a esposa embora”,
não mandou; quem esbravejou que “chutaria o balde e pediria demissão do emprego”,
continuou empregado e quem disse que “tocaria o terror” ficou foi intocada num
canto escondida e aterrorizada.
Se pudéssemos nos aproximar dessas
pessoas nessas situações e lembra-las do que disseram antes, é quase certo que ouviríamos
uma outra frase célebre:
- Ah, mas aqui foi diferente!
Ou a pessoa inquirida seria acometida
pela terrível e maldosa amnésia de ocasião, também chamada de “dando o perdido”,
“se fazendo de besta” ou “fazendo o ‘migué’”. Terrível mal essa amnésia de ocasião.
Pois bem, cuidemos da vida e adiantemos a leitura.
Alguém vai gritar que é hipocrisia, que essas
pessoas são hipócritas como todas as pessoas na terra. Hipocrisia pode ser
entendida como a ação que é contrária ao que se fala.
Hipócrita é a pessoa que diz uma coisa e
faz outra. Por essa perspectiva, seu pai, sua mãe e outros adultos seriam todos
hipócritas quando repetem a frase: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu
faço!” (poderíamos complementar: “quando nem eu faço o que eu falo!”), em
situações do tipo quando mandaram você dizer para o amigo de seu pai que ele não
está em casa, estando.
A hipocrisia também é parte de reflexões
filosóficas, mas que não trataremos aqui, por enquanto vamos utilizar essa
ideia para abordar a questão do autoconhecimento e suas possibilidades.
Com certeza todos conhecemos pessoas que
agem assim, mas, sabemos que também agimos assim? Ou, mais intenso ainda:
aceitamos que também agimos assim?
Pois bem, aqui cabe outro questionamento:
sua vida está sendo bem vivida? Mas não responda com os clichês básicos e eternos,
repetidos aos quatro ventos. Não quero respostas tipo:
- Sim, tenho saúde e paz, o resto eu vou
atrás!
- Com a graça de Deus e como Ele bem
permitir!
No caso desta última, não estou negando o
poder ou a existência de deus ou de quaisquer divindades, apenas peço que
afaste esses elementos cotidianos e superficiais que usamos quando nos
perguntam sobre a qualidade da vida que temos.
COM VOCÊS, SÓCRATES!
Aqui temos Sócrates, divisor de águas na
história da filosofia, que reivindicou a importância da vida refletida, da vida
inquirida, da vida problematizada. Mas não são questionamentos rasos, são perguntas
basilares para que nos sejam expostas as aparências do mundo que são colocadas
como substitutas do que as coisas são.
Seria algo assim: pense numa grande cortina
que estivesse sobre todo o mundo e sobre o que tem nele. Essa grande cortina,
entretanto, não embaça a sua vista de forma efetiva, mas cria imagens que ficam
por cima do que está no mundo.
Como toda cortina, expõe uma parte do que
está do lado de fora. Pode ser que, por curiosidade, espiaremos ou ignoraremos.
Em nível hard, abriremos a cortina e
deixaremos a luz entrar.
A questão é que o que está do lado de fora
pode não ser o que pensávamos – isto seria a estampa da cortina. Pense assim: a
ideia que temos de justiça pode não ser, efetivamente, justa, mas o que foi
estampado na cortina e, o que foi pintado, corresponde ao que acreditamos ser a
realidade.
Agora estenda essa ideia de cortina para
você. Se nós estamos no mundo e tudo o que há no mundo está coberto pela
cortina estampada, então nós também nos vemos por essa estampa na cortina. Isso
quer dizer que o pretenso autoconhecimento também é um autoconhecimento que
está ligado – e muito – ao que é aparente, ou seja, superficial.
Daí a dificuldade de percebermos as
contradições entre o que pensamos, falamos e o que fazemos, as nossas atitudes.
É quando gritamos hipocrisia apontando para as outras pessoas e as outras
pessoas apontam para nós e umas contra as outras. Há, então, não uma hipocrisia
generalizada, mas uma percepção aparente e generalizada sobre quem se é.
Pelo método de Sócrates, temos que
problematizar essa percepção, questioná-la. Arregaçar a cortina para enxergar o
que está do lado de fora, no caso, dentro de nós. Importante ter em mente que,
da mesma forma que as ideias, quando questionadas, podem revelar equívocos e
interesses que entram em conflito com o que pensamos, o que podemos descobrir
sobre nós pode – e geralmente é – desagradável.
Como tendemos a fugir do que não é
prazeroso, não queremos saber, ter contato com que essas verdades sobre nós. Mas
elas não só estarão lá como seguirão arranhando a parede que as prende, a parede
que as cerca e impede de sair.
COM VOCÊS, JUNG
Aqui aproximamos Sócrates de C. G. Jung e
o que este designou como sombra. Podemos conceituar, de forma introdutória,
sombra como sendo aqueles aspectos de quem somos, de nossa personalidade que
estão, por assim dizer, escondidos de nós, no nosso inconsciente – para usar um
termo mais técnico. Essa sombra não é ruim, tampouco deve ser entendida como
boa, mas pode ser entendida como potencialidade e, como toda potencialidade,
pode expor muita coisa.
Sabe aquela sabedoria popular que afirma
que todo mundo tem um lado ruim? Pronto, vamos pensar a sombra a partir dessa perspectiva,
mas vamos entender esse lado ruim fora da dicotomia bem X mal. Esse lado ruim
seria o que está oculto e está oculto por ser desfavorável de alguma forma para
nós. Pense da seguinte maneira: durante a história da sua vida você foi
educada/o de maneira a se comportar mais de uma forma e foi levada/o a reprimir
outra, considerada ruim. O que foi reprimido não sumiu, mas foi “trancado” no
porão, no caso, no inconsciente.
Pense que consciente e inconsciente são
um par e sendo um par atuam (ou deveriam atuar) juntos, o que não acontece de
maneira plena. Se colocamos aspectos de nossa personalidade no “porão”, esses
aspectos compõem o que somos e vão buscar a saída, uma espécie de reconciliação,
uma retomada da dança que foi interrompida em algum momento.
A frase “eu sou assim”, a partir da perspectiva
de Jung, deve ser entendida como “eu me mostro assim”, ou seja, é como se fosse
uma máscara (persona) que forma a nossa personalidade para que possamos viver
no mundo resistindo ao que nos faz sofrer e convivendo com as outras pessoas. A
questão, porém, vai além da proteção contra o mundo no que ele tem de ofensivo
ou do que é necessário para viver nele.
Essa máscara (persona, personalidade) nos
esconde nossa sombra e, vez ou outra, (muitas vezes) essa indesejada meio que “empurra
a porta” nos mostrando o que queremos esconder, o que temos vergonha e mesmo
medo de admitir. Talvez aquela “bad” que nos toma seja essa sombra “vazando”
pelas brechas do inconsciente na direção da luz, do consciente.
E COMO ISSO
ACONTECE?
Sabe quando você tentou se relacionar com
alguém, mas nunca conseguiu, sempre deu errado, você tem o famigerado “dedo
podre”, só aponta para o ruim, para o que não presta? É provável que sua fúria
tenha se voltado para as pessoas que foram ruins com você. Pois bem, essas suas
escolhas podem ser parte de sua sombra “vazando”.
Essas escolhas, quase idênticas, compõem
um padrão. Se você é conhecido pelas suas amizades pela sua incrível capacidade
de escolher um mesmo tipo de relacionamento, o abusivo, pense que há algo que sua
sombra está tentando comunicar. Uma verdade ocultada, algo sobre merecer amar e
ser amada/o e que pode ter a ver com algum momento de sua jornada ou fazer
parte de algum aspecto de sua personalidade.
E quando tem aquela pessoa que você detesta
desde que conheceu, aquela que irrita você quando fala, quando sorri, quando
anda, quando existe, já parou para pensar na razão de tamanha ojeriza? Essas sensações,
esses sentimentos que temos por alguém são muito mais reveladores do que somos,
do que sentimos do que sobre o que a pessoa é, afinal a pessoa não é
responsável sobre o que você sente, ela só pode ser responsável pelo que ela é.
Em situações como essa, a sombra
contribui para você como um espelho contribui para quem quer ajeitar o bigode,
retirar a maquiagem, escovar o dentes: nos mostra algo que pode melhorar a
nossa aparência, sendo que nesse caso não seria a aparência em termos estéticos,
mas aquilo que aparentamos para nós mesmos para encobrir o que nos envergonha, o
que não queremos reconhecer que exista ou que também somos assim.
Talvez você pense que às vezes uma raiva
de alguém é apenas uma raiva de alguém e não tem grande verdade para ser
revelada sobre isso. Há verdade nisso também, mas pense que mesmo essa raiva
diz respeito ao que VOCÊ sente ou sentiu por algo que outra criatura realizou,
disse, expressou. Mais uma vez volta-se para você. Pense mais: o que é dito, o
que é feito não tem significado em si, mas se relaciona a algo que contribui
para a construção de sentido de quem observa, escuta ou sofre a ação.
O QUE FAZER
Aí você afirma: “então eu só preciso
assumir que tenho ‘defeitos’ e pronto, equilibrei tudo!” Calma, jovem, não
funciona assim – ainda bem que não. Encarar a sombra não é um processo apenas
racional (não mesmo). Não se encara o que se é para negar, confrontar e
destruir, mesmo porque não se consegue destruir o que se é. Muito menos para
ser “legal”, complacente, algo tipo “bichinho/a de mim que sou tão terrível”. Longe
disso.
Entrar em contato com a sombra que somos pode
ampliar a luz que temos sem que haja ofuscamento nem apagão, mas um equilíbrio claro/escuro
que integrará qualidades importantíssimas na realização efetiva de quem se é. Não
se viverá sem sofrimentos, mas se terá mais coragem e alegria para passar pelas
atribulações e encarar o que o poeta tão bem definiu como “a pena de viver”.
Assim, trocar a atitude de responsabilizar
o mundo pelo que acontece por uma atitude de busca pela própria contribuição
individual que se dá para o que há no mundo, é um bom primeiro passo.
A pergunta a se fazer é: o que me leva a
essas situações? Por que esses acontecimentos se repetem? Por que eu permito
que essas pessoas entrem na minha vida e façam tudo o que fazem? Por que essa
pessoa me incomoda tanto? Por que essa presença me inquieta? Por que toda vez
que tal coisa é dita eu me sinto assim (ou assado?)
Aqui cabe ilustrar com um clássico do
cancioneiro nacional na voz de Raimundo, o Fagner e do Baleiro Zeca:
Seguem as letras:
À Flor da Pele
Ando tão à flor da
pele,
Que qualquer beijo
de novela me faz chorar,
Ando tão à flor da
pele,
Que teu olhar flor
na janela me faz morrer,
Ando tão à flor da
pele,
Que meu desejo se
confunde
Com a vontade de não
ser,
Ando tão à flor da
pele,
Que a minha pele tem
o fogo do juízo fina
Um barco sem porto,
Sem rumo,
Sem vela,
Cavalo sem sela,
Um bicho solto,
Um cão sem dono,
Um menino,
Um bandido,
Às vezes me preservo
noutras suicido.
Ando tão à flor da
pele,
Que qualquer beijo
de novela me faz chorar,
Ando tão à flor da
pele,
Que teu olhar flor
na janela me faz morrer,
Ando tão à flor da
pele,
Que meu desejo se
confunde
Com a vontade de não
ser,
Ando tão à flor da
pele,
Que a minha pele tem
o fogo do juízo final
Um barco sem porto,
Sem rumo,
Sem vela,
Cavalo sem sela,
Um bicho solto,
Um cão sem dono,
Um menino,
Um bandido,
Às vezes me preservo
noutras suicido
Oh sim eu estou tão
cansado,
Mas não pra dizer,
Que não acredito
mais em você
Eu não preciso de
muito dinheiro,
Graças a Deus
Mas vou tomar aquele
velho navio,
Aquele velho navio..
Revelação
Um dia vestido de
saudade viva
Faz ressuscitar
Casas mal vividas,
camas repartidas
Faz se revelar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Volta a incomodar
Volta a incomodar
Quem nunca se sentiu “à flor da pele”? Qualquer
coisa que aconteça é recebida com muita intensidade, desde um bom dia de alguém,
passando pela desarrumação da casa até chegar ao vento que irrita simplesmente
porque está ventando.
Uma espécie de desorientação, incerteza,
insegurança de não se sabe o quê nos ajudam a ter uma chave de leitura para a
canção e que pode se aproximar desse “grito silencioso” da sombra que temos e
que quer “encontrar a luz”.
Tentar “se guardar”, ilhar o sentimento
apenas traz uma falsa sensação de bem-estar, deixar de lado o que incomoda não
é lidar com o que incomoda, mas sim não encarar o abismo que se é e que tem um
grande olhar no fundo, esperando para nos encarar e nos fazer ver o feio e o
belo que somos em uma perspectiva que ultrapassa a estética, dizendo respeito
ao mal que somos e ao bem que também nos é.
Aqui é muito importante ter em mente que
o mal de que se trata não é o mal caricato de filmes e telenovelas, é o mal
ancestral, aquele que faz parte da história, quando não se negava, mas
buscava-se a convivência equilibrada que garantisse a manutenção da vida.
Pare e pense: se todo mundo é mal, mas todo
mundo é bom (porque diz que os outros é que são ruins), quem é, verdadeiramente
a vítima desse mal? Tenso, né? O mal do mundo é o resultado da soma do mal de
cada um. Enquanto negarmos isso, seguiremos sofrendo e fazendo sofrer quem
afirmamos amar acima de tudo.
Retomo as questões: o que me leva a essas
situações? Por que esses acontecimentos se repetem? Por que eu permito que
essas pessoas entrem na minha vida e façam tudo o que fazem? Por que essa
pessoa me incomoda tanto? Por que essa presença me inquieta? Por que toda vez
que tal coisa é dita eu me sinto assim (ou assado?)? O que é essa sensação de
desalinho com a minha vida, com as pessoas que eu creio amar?
As respostas, se procuradas no porão em
que foram jogados aspectos considerados ruins, nocivos e mesmo temores e
fragilidades infundados ou fruto de situações dolorosas, estarão na sombra e na
aceitação ativa e não complacente do mal que também há em nós.

Não somos bons nem maus essencialmente. Somos
potencialidades que carregam a ambiguidade do existir. Afirmar que tudo é culpa
do ego é uma solução rasa e que não dá conta dos caminhos quase infinitos pelos
quais podemos trilhar, se embarcarmos na viagem fantástica do autoconhecimento.
Não será fácil, será doloroso, mas com certeza nos engrandecerá e tornará nossa
vida mais consciente e, por extensão, mais nossa.