a
coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer
a barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer
os filhos vão crescendo e o tempo vai dizendo que agora é pra valer
os outros vão morrendo e a gente aprendendo a esquecer
não quero morrer pois quero ver como será que deve ser envelhecer
eu quero é viver pra ver qual é e dizer venha pra o que vai acontecer
a barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer
os filhos vão crescendo e o tempo vai dizendo que agora é pra valer
os outros vão morrendo e a gente aprendendo a esquecer
não quero morrer pois quero ver como será que deve ser envelhecer
eu quero é viver pra ver qual é e dizer venha pra o que vai acontecer
(...)
Otimismo
é uma das características presentes em toda a composição do
ex-titã. Ainda que muito válida essa perspectiva, o envelhecimento
traz algumas transformações físicas e psíquicas que alteram a
qualidade de vida e, por extensão, deveriam receber mais atenção
por parte de todo mundo. Essa atenção, porém, deve ultrapassar
alguns lugares muito comuns quando trata-se desse assunto. É preciso
superar a ideia de “melhor idade”, de “vovô e vovó
queridinha” que só vive em função dos netos e netas.
O
extremo oposto também deve ser superado: a ideia de que velhinhas e
velhinhos são a personificação do mal na terra – principalmente
as mulheres idosas, geralmente postas no imaginário como sendo as
bruxas que servem ao diabo e, para tanto, enganam, oferecem poções
mágicas, enfeitiçam e toda uma ampla gama de artíficios para
atingir seus intentos.
Um
dos primeiros aspectos a ser considerado é que o envelhecimento é
uma uma
questão de saúde pública,
o que quer dizer que é de interesses coletivo porque
tem relação com
e
afeta vários âmbitos da vida social e, por isso,
deve ter atenção do Estado pois idosas e idosos estão em situação
de vulnerabilidade, que pode ser definida como a situação em que
indivíduos ou
grupos têm sua capacidade de autodeterminação reduzida
apresentando
dificuldades em
se autoproteger devido
a exiguidade
de
poder, de
cognição,
educação, recursos diversos
(não apenas materiais),
força ou outros aspectos.
Deve
ser considerado que a situação de vulnerabilidade não está
atrelada apenas aos mais velhos e mais velhas, mas qualquer indivíduo
que esteja na situação descrita, o que impede a possibilidade de
incorrer em outro estereótipo que é o de velhinhas e velhinhos como
sendo o único grupo que pode estar vulnerável.
Retornando
ao caso de idosas e idosos, a situação de vulnerabilidade pode ser
relacionada a alguns aspectos. Dentre os primeiros está a crescente
dificuldade em realizar as atividades mais prosaicas, mais
cotidianas. Essa queda gradativa da autodeterminação torna as
pessoas idosas mais dependentes de outras, o que faz aparecer um
outro problema: quem vai cuidar dessas pessoas? Há alguns anos essa
pergunta tinha uma resposta mais simples: alguma das filhas ou a
filha que ainda não tivesse casado (a popular solteirona).
Adicione
às questões de autodeterminação, um conjunto de situações que
contribuem para a incapacitação crônica, como osteoartrite,
osteoporose, hipertensão, diabetes mellitus, depressão, entre
outras. Quando
se trata de envelhecimento, essas situações podem
ser classificadas como inevitáveis (ou quase), tornando fundamentais
as perspectivas do cuidado e, mais especificamente, do cuidado
preventivo.
Mesmo
o envelhecimento sendo comum a todas e todos, a população feminina
é mais atingida pela situação de vulnerabilidade, uma vez que,
além de sofrer pelas
incapacitações, ainda sofre com discriminação, violência,
trabalho doméstico, dificuldades educacionais e profissionais.
Amplifica-se a deterioração tanto física quanto emocional, que
passa a ser acompanhada por fragilidades também existenciais, que
vão da autoestima passando pela dependência em relações abusivas
(muitas vezes familiares) e chegando, em muitas situações, ao
abandono propriamente dito e também ao suicídio, antecedido por
estados de depressão.
É
importante ter em mente que entre
as mulheres, o grupo das mulheres negras são atingidas de maneira
mais incisiva pelas situações descritas acima, sendo tal condição
atrelada ao racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira.
Desses
males físicos e psíquicos passamos para as questões propriamente
sociais, ligadas à cidadania e ao
usufruto de direitos.
DIREITOS
E CIDADANIA
Considerando
que direitos são garantias jurídicas que devem possibilitar a
sobrevivência, para a pessoa idosa esse usufruto é precário para
além da medida. A chamada população jovem e em idade produtiva já
não usufrui dessas garantias da maneira que deveria e, a
partir daí pense como deve ser dificil para uma pessoa idosa se
locomover pelas ruas com calçadas altas ou com muitos buracos, pegar
uma condução como
são os ônibus e metrôs da maior parte das cidades do país são
uma experiência física excruciante para as pessoas idosas e que
traz muitos sofrimentos. A liberdade de locomoção é restrita e
essa restrição vem acompanhada de
um processo de invisibilização social, que nega direitos aos que
cumpriram com deveres durante toda uma vida.
É
importante ter em mente que o trabalho a que nos dedicamos define
nossas identidades pessoais e mesmo sociais. Em conversas, quando nos
apresentamos, o fazemos a partir de nossos trabalhos: “sou fulana,
médica”, “eu sou beltrana, engenheira”. Essa identidade é
fundamental na formação e manutenção da autoestima e, quando
chega o momento da aposentadoria, do afastamento das atividades as
quais uma pessoa se dedicou durante décadas, é como se fosse
retirada dela o direito de “ser quem ela é”.
Há
um número grande de pesquisas que comprovam que após a
aposentadoria muitas pessoas adoecem, entram
em estados depressivos e
cometem suicídios
motivados
pelo afastamento de suas atividades. Entretanto, o afastamento das
atividades por aposentadoria seria uma espécie de “mal menor”,
se levarmos em consideração que mesmo
afastadas essas pessoas teriam uma renda – mesmo que não atendendo
bem todas as suas necessidades.
A
situação torna-se mais problemática quando ocorre a demissão:
mesmo com experiência de sobra na atividade a qual se dedicou por
muito tempo, a pessoa – agora idosa – não encontra espaço para
continuar trabalhando, seja porque houve uma modernização daquela
atividade para além do que a pessoa consegue acompanhar, seja porque
o mercado de trabalho busca pessoas mais jovens para desempenhar
aquela função, principalmente se estiver ligada ao trato com o
público. Há vários casos de professores, por exemplo, que foram
demitidos, entre outras razões, porque não eram bonitos e jovens.
Há,
porém, uma atenção que pode ser classificada como perversa: aquela
que tem como interesse a aposentadoria dessas pessoas. Aqui se faz
referência aos inúmeros serviços de empréstimos consignados para
aposentados e pensionistas. Ramo do mercado que se desenvolveu a
partir da percepção de um nicho rentável e com garantias de
recebimento, várias
são as estratégias para garantir a “realização do sonho e do
conforto da ‘boa idade’”. Ligações intermitentes, mensagens
de celular, abordagens nas ruas, nas filas de banco quando vão
receber seus valores mensais, os mecanismos são quase infinitos.
Uma
outra atenção (perversa) reveladora da violação de direitos da
pessoa idosa diz respeito à saúde: a rede pública não atende da
maneira que deveria e a iniciativa particular chega a ser abusiva ao
fornecer planos de saúde a preços elevadíssimos e que trazem, em
seu funcionamento, muitas dificuldades para garantir o cuidado e a
atenção necessários para a manutenção da vida desses
indivíduos.
Uma das provas que o abuso ocorre em escalas elevadas é a
necessidade
da criação de um estatuto do idoso que, para além das questões de
serviços públicos de saúde, visa proteger de uma estrutura social
que negligencia e violenta o que não é jovem e belo dentro dos
padrões socialmente estabelecidos e reproduzidos.
TRABALHO
REPRODUTIVO
Aqui
se faz necessária a reflexão sobre o trabalho reprodutivo, que é,
conceitualmente, o trabalho que assegura a continuidade da vida, ou
seja, é uma atividade ligada ao cuidado, sendo o cuidado entendido
como as práticas relacionadas ao vestuário, alimentação e
higiene. O trabalho reprodutivo foi historicamente atribuído às
mulheres mas passou por algumas mudanças, ou melhor, impactos a
partir do aumento das reivindicações feministas e, a partir destas,
pelo ingresso das mulheres no mercado de trabalho.
Quando
o cuidado passa a ser profissão (trabalho reprodutivo), a gratuidade
do trabalho doméstico e o fato de ser exclusividade feminina é
diretamente atingido, o que leva a outras mudanças que não são o
objetivo deste texto.
As
pessoas idosas, historicamente, não eram alvo de interesse de
mercado, o que passou a mudar e a geriatria passou a ser uma área em
franco desenvolvimento no Brasil (com atraso quando se compara com
outros países do mundo), o que pode ser identificado no crescimento
de agências que oferecem os serviços profissionais de cuidado, o
que pode ser visto como algo positivo mas que apresenta o problema do
custo/investimento que se deve fazer e que a maior parte da população
não tem condições.
Aqui
pode ser inserido o papel do Estado no que se refere ao direito à
saúde e a uma vida com dignidade: a efetivação de um projeto que
prepare a saúde pública para atender a essas demandas que tendem a
ficar ainda maiores e não devem ser deixadas aos cuidados livres de
regulação de empresas particulares.
Assim,
ao pensarmos o envelhecimento, que é inevitável, devemos pensá-lo
para além dos estereótipos mencionados no início do texto e
abordá-lo
pela perspectiva de políticas públicas que agreguem Estado e
sociedade civil, ou seja, o envelhecimento é uma questão social
importante pois afeta diretamente a produtividade, a prestação de
serviços, a saúde pública e, o que deveria ser mais importante, a
qualidade da vida humana.
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