A
forma como pensamos o mundo é ideológica. Como estamos no mundo,
por extensão, também somos ideologicamente formadas e formados e
isso quer dizer que estamos, inevitavelmente, atreladas e atrelados a
um conjunto de ideias. Esse conjunto de ideias é o que chamamos de
ideologia – conjunto de ideias que compõe as formas coletivas de
agir, de pensar e mesmo de sentir. Talvez você pense: eu não! Penso
com minha própria cabeça e nenhuma ideologia me diz o que fazer!
Bem,
essa é uma das formas (e são muitas) através das quais as
ideologias atuam: nos fazem pensar que nossas ideias vieram somente
de nossa capacidade de pensar, o que é questionável principalmente
do ponto de vista filosófico, sociológico. O conhecimento histórico
nos ajuda a confirmar essa perspectiva. Não tem como viver em
sociedade e não ter vínculo ou sofrer influências de ideias
externas a nós, pois, desde o nascimento, o processo de socialização
atua nesse sentido. A Mafalda que o diga.
Pense
nas ideias que você tem (pausa no texto para você pensar)
…………………………………………………………………………………………………….
você acredita que elas vieram do nada? Que você sempre as teve?
Pense em algo como “política não se discute”. Faça aquele
esforço de memória para lembrar o momento mais antigo, a memória
mais remota que você tem sobre alguma situação em que essa frase
foi repetida. Talvez sua memória te leve para aquelas reuniões de
final de semana, com a família inteira e alguma tia sua dizendo que
“política não é pra se discutir! É feito religião e futebol:
NÃO SE DISCUTE!!!”
Pronto!
Se uma reminiscência parecida com essa veio à tona, então eu te
questiono, pessoa que agora lê: tem certeza que ninguém te diz o
que pensar e mesmo fazer e até o que sentir? Pausa dramática para o
“eita, é mesmo!”.
Pois
bem, agora que entramos em consenso sobre a possível origem das
nossas ideias, vamos pensar sobre os pensamentos sobre o nosso país.
Mas, antes de tal empreitada, é importante que você tenha em mente
que toda produção humana é ideológica, tem relação com ideias e
ideias tem a ver com os valores que atribuímos ao mundo ao nosso
redor e também a nós. Como é notável, há uma grande interrelação
entre os vários âmbitos da vida em sociedade. Perceber essas
interrelações é ter imaginação sociológica.
Isso
quer dizer que não há neutralidade ideológica no que fazemos. No
sentido que sempre existirá relação entre o que pensamos e o que
fazemos. Poderíamos, para simplificar, afirmar, há ideologias em
tudo.
Pensar
o país em que vivemos implica identificar alguns aspectos de senso
comum para justificar as mazelas que sofremos no mundo atual: “tudo
começou no período colonial, pois as primeiras pessoas a chegarem
aqui eram degenerados, bandidos, prostitutas. Com essa composição,
o Brasil só poderia ter dado errado”. Essa fala compõe o
repertório de muitos professores e professoras de História (e de
outras áreas do conhecimento) que durante o ano letivo afirmam
reiteradas vezes esse juízo de valor.
É
um grande desserviço ao conhecimento histórico e também à
possibilidade de desenvolvimento de senso crítico por parte de
estudantes, uma vez que a fala docente tem uma autoridade muito
grande sobre as turmas. Professor/a falou, verdade verdadeira é. A
abordagem mais adequada seria problematizar inclusive essas ideias,
porque, como lemos, ideias têm uma história e fazer a genealogia
dessa ideia de Brasil como terra de mazelas permitiria desenvolver a
capacidade de emitir juízos menos apaixonados e mais
problematizadores.
Outro
ponto de vista comum sobre o Brasil é de que somos um país “gigante
pela sua própria natureza”, um país “abençoado por deus”.
Patriotismo exagerado que pode descambar em ufanismo e ser
justificativa para governos de exceção, ditatoriais. Como pode-se
notar, são extremos que negam a historicidade (ou possibilidade
dela). Parece que sempre existiu esse país, sempre existiram essas
mazelas ou mesmo essas belezas atribuídas.
Por
meio de educação indireta, aquela que não acontece na escola, mas
fora dela e em vários locais como grupos religiosos, ambientes de
trabalho, parques, conversas na fila para pagar contas etc, essas
ideias são emitidas e repassadas adiante, de maneira aparentemente
inofensiva. Nesse processo de aprendizado indireto, as músicas são
protagonistas fundamentais, pois cantarolamos o último sucesso sem,
muitas vezes, prestar atenção ao que está sendo dito.
Comecemos
com um clássico: Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, por muitas
pessoas, considerado o hino do país.
Brasil
Meu
Brasil brasileiro
Meu
mulato inzoneiro
Vou
cantar-te nos meus versos
Ô
Brasil, samba que dá
Bamboleio
que faz gingar
Ô
Brasil, do meu amor
Terra
de Nosso Senhor
Brasil,
Brasil
Pra
mim, pra mim
Ah,
abre a cortina do passado
Tira
a Mãe Preta,do serrado
Bota
o Rei Congo, no congado
Brasil,
Brasil
Pra
mim, pra mim
Deixa,
cantar de novo o trovador
A
merencória luz da lua
Toda
canção do meu amor
Quero
ver Essa Dona, caminhando
Pelos
salões arrastando
O
seu vestido rendado
Brasil,
Brasil
Pra
mim, pra mim
Brasil
Terra
boa e gostosa
Da
morena sestrosa
De
olhar indiscreto
Ô
Brasil, samba que dá
Bamboleio,
que faz gingar
Ô
Brasil, do meu amor
Terra
de Nosso Senhor
Brasil,
Brasil
Pra
mim, pra mim
Oh,
esse coqueiro que dá coco
Onde
eu amarro a minha rede
Nas
noites claras de luar
Brasil,
Brasil
Pra
mim, pra mim
Ah,
ouve essas fontes murmurantes
Aonde
eu mato a minha sede
E
onde a lua vem brincar
Ah,
este Brasil lindo e trigueiro
É
o meu Brasil, brasileiro
Terra
de samba e pandeiro
Brasil,
Brasil
Pra
mim, pra mim
Analisando
a letra da composição, identificamos elementos que até hoje compõe
o imaginário positivo e otimista do Brasil: a mistura, a
miscigenação estão presentes como algo para se orgulhar. A alegria
e o samba pedem passagem também, juntamente com a sensualidade
afrodescendente e a esperteza de quem acredita que deve sempre tirar
vantagem quando for possível e que compõe, hoje a ideia de jeitinho
brasileiro.
Outra
canção nessa mesma linha, gerou desentendimentos na época de seu
lançamento, País tropical, de Jorge Ben, constrói e reproduz a
ideia de que “deus é brasileiro”, por sermos abençoados pois
não sofremos com terremotos e outros problemas ambientais. Afirma
também a sensualidade da mulher negra, a Teresa); posteriormente Seu
Jorge e, mais recentemente, Ivete Sangalo fizeram suas versões,
também com muito sucesso.
País
Tropical
Wilson
Simonal
Moro
num país tropical
Abençoado
por Deus
E
bonito por natureza
(Mas
que beleza)
Em
fevereiro
(Em
fevereiro), tem carnaval
(Tem
carnaval,)
Tenho
um fusca e um violão
Sou
Flamengo e tenho uma nega chamada teresa
Sambaby,
sambaby,
Sou
um menino de mentalidade mediana(pois é)
Mas
assim mesmo, feliz da vida
Pois
eu não devo nada a ninguem
(pois
é)pois eu sou feliz,muito feliz comigo mesmo
Sambaby,sambaby
Eu
posso não ser um bandleador (pois é)
Mas
assim mesmo la em casa, todos meus amigos
Meus
camaradas, me respeitam (pois é)
Essa
é a razao da simpatia do poder,
Do
algo mais é da alegria .
Mó,num
pá tropi,
Abençóa
por Dé
E
boni por naturé (mas que belé)
Em
feveré (em feveré)
Tem
carná (tem carná)
Eu
tenho um fu e um vio,
Sou
flamé,tê uma nê chamá Terê
Sou
flamé,tê uma nê chamá Terê.
Saindo
de um extremo e indo para outro, temos a visão pessimista e
aparentemente crítica da história do Brasil. A crítica é aparente
pois envereda para a postura de reclamar afirmando que não há nada
positivo no país. Uma canção de muito sucesso é a seguinte:
Meu
país
Livardo
Alves - Orlando Tejo - Gilvan Chaves
Tô
vendo tudo, tô vendo tudo
Mas,
bico calado, faz de conta que sou mudo
Um
país que crianças elimina
Que
não ouve o clamor dos esquecidos
Onde
nunca os humildes são ouvidos
E
uma elite sem Deus é quem domina
Que
permite um estupro em cada esquina
E
a certeza da dúvida infeliz
Onde
quem tem razão baixa a cerviz
E
massacram - se o negro e a mulher
Pode
ser o país de quem quiser
Mas
não é, com certeza, o meu país
Um
país onde as leis são descartáveis
Por
ausência de códigos corretos
Com
quarenta milhões de analfabetos
E
maior multidão de miseráveis
Um
país onde os homens confiáveis
Não
têm voz, não têm vez, nem diretriz
Mas
corruptos têm voz e vez e bis
E
o respaldo de estímulo incomum
Pode
ser o país de qualquer um
Mas
não é com certeza o meu país
Um
país que perdeu a identidade
Sepultou
o idioma português
Aprendeu
a falar pornofonês
Aderindo
à global vulgaridade
Um
país que não tem capacidade
De
saber o que pensa e o que diz
Que
não pode esconder a cicatriz
De
um povo de bem que vive mal
Pode
ser o país do carnaval
Mas
não é com certeza o meu país
Um
país que seus índios discrimina
E
as ciências e as artes não respeita
Um
país que ainda morre de maleita
Por
atraso geral da medicina
Um
país onde escola não ensina
E
hospital não dispõe de raio - x
Onde
a gente dos morros é feliz
Se
tem água de chuva e luz do sol
Pode
ser o país do futebol
Mas
não é com certeza o meu país
Tô
vendo tudo, tô vendo tudo
Mas,
bico calado, faz de conta que sou mudo
Um
país que é doente e não se cura
Quer
ficar sempre no terceiro mundo
Que
do poço fatal chegou ao fundo
Sem
saber emergir da noite escura
Um
país que engoliu a compostura
Atendendo
a políticos sutis
Que
dividem o Brasil em mil Brasis
Pra
melhor assaltar de ponta a ponta
Pode
ser o país do faz-de-conta
Mas
não é com certeza o meu país
Tô
vendo tudo, tô vendo tudo
Mas,
bico calado, faz de conta que sou mudo
É
feita uma descrição quase cirúrgica de mazelas que atingem quase
toda a população brasileira. Fome, miséria, políticos corruptos,
hospitais em frangalhos, escolas precárias, analfabetismo, racismo
e, diante de tudo isso, o eu lírico apenas fica calado, observando
- a vida descrita na arte ou a arte copiando a realidade?
A
canção seguinte traz a mesma perspectiva de crítica de mazelas
sociais, mas é feito um clamor para que seja desmascarado o país e
que este confie no eu lírico da canção, num pedido que se apoia na
lealdade, na ideia de que não será o Brasil traído.
BRASIL
Cazuza/George
Israel/Nilo Roméro
Não
me convidaram
Pra
essa festa pobre
Que
os homens armaram pra me convencer
A
pagar sem ver
Toda
essa droga
Que
já vem malhada antes de eu nascer
Não
me ofereceram
Nem
um cigarro
Fiquei
na porta estacionando os carros
Não
me elegeram
Chefe
de nada
O
meu cartão de crédito é uma navalha
Brasil
Mostra
tua cara
Quero
ver quem paga
Pra
gente ficar assim
Brasil
Qual
é o teu negócio?
O
nome do teu sócio?
Confia
em mim
Não
me convidaram
Pra
essa festa pobre
Que
os homens armaram pra me convencer
A
pagar sem ver
Toda
essa droga
Que
já vem malhada antes de eu nascer
Não
me sortearam
A
garota do Fantástico
Não
me subornaram
Será
que é o meu fim?
Ver
TV a cores
Na
taba de um índio
Programada
pra só dizer "sim, sim"
Brasil
Mostra
a tua cara
Quero
ver quem paga
Pra
gente ficar assim
Brasil
Qual
é o teu negócio?
O
nome do teu sócio?
Confia
em mim
Grande
pátria desimportante
Em
nenhum instante
Eu
vou te trair
(Não
vou te trair)
O
que há em comum nestas quatro canções é o posicionamento binário
da realidade, que é mais complexa do que uma divisão entre as
percepções de um país “abençoado” ou “degenerado” e sem
solução. Em
ambos os posicionamentos existem ideologias que mascaram a
complexidade do real. Não há, também, certos ou errados mas sim o
entendimento de que bem ou mal não existem em estado puro na
história de qualquer sociedade. É
importante superar essa dicotomia e aceitar o desafio de propor
possibilidades que dialoguem entre si, aceitando uma
das características fundamentais da democracia: o conflito.
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