A
vida em sociedade é marcada por conflitos. Sendo que esses conflitos
são, muitas vezes, vistos como algo a ser combatido, que a vida
social deveria ser de paz e tranquilidade. Essa perspectiva é muito
válida mas não condiz com um dos aspectos que caracteriza a
história da humanidade e, em alguma medida, a própria existência
no planeta: a dialética. Vamos por partes, tal qual fatiador de
queijo em tempos de escassez.
Dialética
diz respeito a conflito, a conflito de opostos e que levam a
mudanças, sendo qualitativas, quantitativas e uma mescla das duas.
Isso pode ser entendido de maneira simples: as coisas mudam! Para que
mudem, reações em cadeia devem acontecer. Algumas pessoas serão
afetadas e acharão boas as transformações, outras, se entenderão
(e serão mesmo) prejudicadas e outras tantas mal serão ou nem serão
atingidas. Contradições inerentes aos acontecimentos e que estão
presentes no mais trivial dos atos até a mais grandiosa
movimentação.
Então,
para continuar nessa leitura, devemos entender que a vida social é
mutável e ainda podemos concordar com o pensador Augusto Comte,
aquele fundador da Sociologia (a física social), quando ele afirma
que a sociedade é estática e dinâmica ao mesmo tempo. A sociedade,
por essa abordagem, tem aspectos, instituições que não mudam ou
mudam pouco. Família, educação, religião são exemplos de
instituições dinâmicas e estáticas: arranjos familiares, formas
de educação, religiões existem em várias sociedades e ao longo
dos tempos, mas com diferenças relacionadas aos contextos que são
analisados, que são pesquisados e as épocas em que se vivia.
CIDADANIA,
DIREITOS E O CONFLITO QUE TEMOS E PRECISAMOS TER
Uma
definição de cidadania que utilizaremos aqui é: possibilidade de
viver no usufruto de direitos. Cidadã é a pessoa que usufrui de
direitos, o que nos leva para outra questão: o que são direitos?
Pois bem, essa pergunta é de múltipla resposta. Se você questionar
pessoas sobre o que são direitos, elas, provavelmente, te dirão
exemplos de direitos mas não uma definição do que seja um direito.
Essa dificuldade é comum e expõe a importância de pensar através
de conceitos, sendo estes como enquadramentos da realidade que nos
cerca e da qual fazemos parte.
Sem
mais delongas, direitos podem ser definidos como garantias jurídicas
para a sobrevivência de indivíduos e grupos em sociedade. Direitos
garantidos não quer dizer que direitos são usufruídos em sua
plenitude. Quer dizer que há garantias em vários aspectos para que
se possa viver com outras pessoas e apesar delas. Garantias para que
as pessoas humanas possam desenvolver suas potencialidades,
realizando tudo o que podem realizar, tornando-se tudo o que
conseguirem se tornar.
Aí
se insere o que foi mencionado acima: o conflito! A realização de
potencialidades carrega em si a possibilidade do conflito de
interesses e de necessidades, o que traz a tona a decisão que deve
ser tomada: qual o direito deve ser violado em nome de outro?
Exemplos nos ajudam a entender melhor: se tenho direito a expressar
minhas crenças, ninguém deveria me privar, ok? A resposta é sim e
não – ao mesmo tempo e na mesma hora. Como assim? Vamos lá pensar
mais um pouco nessa vastidão de contradições.
A
liberdade de expressão concretiza a liberdade de pensamento. Só há
pensamento livre se se pode expressar o que se pensa pois a liberdade
de expressão garante o direito à informação e o direito à
informação é fundamental para a liberdade de imprensa, ao mesmo
tempo que sem uma imprensa livre e qualificada o direito à
informação não é usufruído em sua plenitude.
Se
eu não gosto de determinadas pessoas pois a forma como elas vivem
está em desacordo com a minha cosmovisão, com a minha visão de
mundo, enquanto eu penso, a sociedade em que vivo não tem nada a ver
com isso, mas, quando expresso o que penso, quando apresento minha
“participação
inteligente no bloqueio a Cuba”
(parafraseando o Caetano em sua clássica e
contundente Haiti), essa fala pode gerar repercussões e entre estas
pode estar a violação à dignidade de outros seres, a extinção
mesmo da vida do que não é igual a mim.
De
situações como essa surgem os conflitos de direitos, que expõem a
dialética que está presente em todas as sociedades humanas, como
mencionado no início do texto. Se responsabilizo alguém por injúria
racial, valorizo o direito à dignidade, o direito de existir sendo
quem se é. Ao mesmo tempo, violo a liberdade de expressão pois esta
atinge, na situação exposta, o direito de outra pessoa ou grupo.
Quando não se reprime ou pune quem expressa ideias que podem colocar
em risco a vida de outras pessoas por incitarem, entre outros crimes,
os crimes de ódio, é o direito à vida – e a dignidade – que
está sendo violado, mas valoriza-se a expressão.
Essas
situações devem ser lidas para além do bem e do mal no sentido de
não ser a personificação do mal quem defende a livre expressão e
nem quem defende a dignidade. São indivíduos que procuram
(acreditemos) viver a partir dos parâmetros que definiram para si (a
partir de ideologias que são historicamente elaboradas e por grupos
específicos com interesses também muito específicos). Passa a ser
de interesse coletivo o que afeta (obviamente, mas às vezes não se
vê isso – ou não se quer ver) o coletivo de uma sociedade.
Seguindo essa linha de raciocínio, o direito à moradia pode entrar
em conflito com o direito à propriedade e o direito à vida pode
entrar em conflito com o (pasme!) próprio direito à vida. Exemplo:
quando há pessoas que, para garantir a própria vida, devem
extinguir a vida de alguém ou de outras pessoas.
Esses
conflitos proporcionam o aperfeiçoamento da vida em sociedade e,
mais especificamente, a democracia pode ser aperfeiçoada. Negar-se a
lidar com essas contradições é desvalorizar o próprio regime
democrático, que é (ou deve ser) perfectível, transparente e
conflituoso. Como podemos esperar aperfeiçoamento em um regime
marcado pela negação do direito ao contraditório? Viver em regime
democrático é aceitar a parte que cabe no latifúndio da cidadania,
é saber que não se deve negar o próprio regime em prol de regimes
mais “rígidos”, legal e moralmente (pelo menos na aparência).
Regimes
autoritários (também chamados de ditaduras – há uma treta
conceitual que não desenvolveremos nesse texto) não são
aperfeiçoáveis, transparentes e não permitem o conflito de ideias,
de pensamentos, de opiniões e a história da humanidade ocidental
deixou vários exemplos disso.
A
reivindicação por um regime ditatorial pode ser entendida como
imaturidade social e desconhecimento de situações históricas
importantes (inclusive no país). No primeiro aspecto, imaturidade
diz respeito a dificuldade de lidar com as oposições. Seria algo
parecido com o chamado “mimimi” de uma criança fazendo birra
pois não querem brincar do jeito que ela acha melhor. Não se
procura debater ideias, não são toleradas críticas e, geralmente,
a violência (verbal e física) tende a ser aplicada como
“argumento”. As redes sociais fornecem vários exemplos dessa
atitude.
E
A SITUAÇÃO DOS CAMINHONEIROS?
Não
será tratada a origem do movimento que parou praticamente todo o
país, mas alguns aspectos das repercussões desse movimento. A
liberdade de locomoção foi restringida consideravelmente e o
abastecimento de diversos gêneros está comprometido. É
generalizada a notícia das dificuldades enfrentadas por
trabalhadoras e trabalhadores para saírem de suas casas rumo ao
trabalho e também na volta para casa. Poucos ônibus circulando e
lotados de forma tal que parecem que vão estourar espalhando pessoas
para todos lados. “Sempre cabe mais um” é comparável a uma lei
da física só percebida e vivenciada por quem depende do serviço
público de transporte. Situação cotidiana e intensificada no atual
cenário com a paralisação dos caminhoneiros.
Aqui
cabe uma análise, a partir de um dos conceitos de ideologia, da
atitude das pessoas trabalhadoras que se enfiam contra todas as
possibilidades físicas em um ônibus lotado. Sendo ideologia um
conjunto de ideias que compõe as formas de sentir, de pensar, de
agir de pessoas e grupos, o que fazemos de nossa vida, de nós
mesmos, como nos relacionamos com o mundo e com outras pessoas, é
uma elaboração coletiva, determinada historicamente, externa a nós
e que naturaliza o que acontece fazendo parecer que sempre foi assim
e não que é produto de necessidades e interesses que nada têm de
divinizado ou mágico.
Há
uma ideologia do trabalho historicamente construída e reafirmada
cotidianamente. Essas ideias levam as pessoas a fazerem um esforço
descomunal e se sujeitarem ao horror físico e psicológico de ir
trabalhar em péssimas condições quando poderiam dizer: “eita,
não dá para ir nessas condições de falta de transporte”.
Entretanto, o que se escuta são frases tipo: “menino, eu tenho que
ir pro trabalho mesmo assim!” “Tá doido, se eu não for quem vai
fazer o trabalho hoje?”
Em
muitas situações o próprio patrão não foi realizar suas
atividades porque não tinha combustível para sair de casa mas exige
da força de trabalho que, “aos trancos e barrancos dê seu jeito
de ir pro serviço” A ideologia aqui atua com mais um adicional: a
necessidade. A força de trabalho é composta por mais pessoas que
atividades a serem desempenhadas (com alguma dignidade) então, o
modo de produção se sustenta na necessidade de sobrevivência a tal
ponto que o temor de perder o trabalho e sofrer com o desemprego
sempre galopante, leva as pessoas a se sujeitarem. É um conjunto de
fatores que convergem para a manutenção da ordem vigente.
Outro
aspecto que se pode notar é a dificuldade de obter informações
sobre o andamento da situação, salvo em canais alternativos de
notícia, fora dos veículos da grande mídia. Aqui é importante
fazer a ressalva de que gritar “o povo não é bobo, abaixo
determinada rede de TV” não resolve e muito menos impacta de forma
efetiva no monopólio que se tem no Brasil sobre a comunicação.
Palavras sem ações efetivas que reivindiquem a regulação da mídia
são, como na estrofe da canção popular, “espumas ao vento”.
Além de clichê level hard quando se escreve em uma redação para o
ENEM que aborde essa temática.
Quando
se lê numa notícia que o país está refém de caminhoneiros,
pode-se perceber uma característica da ideologia, a lacuna, que
deixa um espaço incompleto no que está sendo dito e esse hiato
contribui para a propagação de uma falácia de falsa causa,
invertendo a relação e colocando como causa o que é, na verdade,
consequência de algo que está escondido na lacuna do discurso
apresentado.
Então,
se chega ao ponto aparentemente mais espinhoso e polêmico: as faixas
expostas reivindicando intervenção militar. Aqui é importante que
se leia e procure entender o que está escrito para além dos sabores
políticos. A experiência do pensamento deve ser problematizadora e
não panfletária e menos ainda sem reflexões sobre o que se pensa e
sobre a origem desses pensamentos.
Há
um discurso generalizado de que a política nacional está corrompida
“do cóccix até o pescoço” (para citar o álbum da cantora Elza
Soares) e, pode-se afirmar a partir do que foi descrito acima, que
parte considerável dessas ideias foi sedimentada em vários âmbitos
da vida social tupiniquim. Família, educação, Estado, religião
deram e dão sua contribuição fundamental para que essa ideologia
se reproduza e mantenha. Adicione uma mídia que não foi
regulamentada e a ausência de uma rede pública de TV e a negação
da política como algo que pode e deve ser discutido vai ser parte do
que se pensa e fala sobre o assunto.
Todos
os dias essa cantilena repetida e a veiculação de denúncias
(unilaterais em sua maior parte) de corrupção, contribuem para que
se busque uma solução “rápida e prática” contra esse terrível
mal. Há um coral uníssono de que se é contra a corrupção, que
deve-se combatê-la, extirpá-la, tochas nas mãos, justiça!
Justiça! Justiça! Pois bem, ser contra a corrupção é o que se
espera moralmente de qualquer cidadã/o. Não quer dizer muita coisa,
apenas que se é contra a corrupção. O nó todo pode ser desfeito
(não há garantias) se ultrapassar a fronteira do discurso e passar
a agir. Pode-se começar parando de vincular a corrupção a juízos
apenas morais e abordar como geradora e reprodutora de desigualdades.
Política
não é o âmbito do discurso apenas. Muito menos das ações
moralmente baseadas em discursos polarizados tipo direita e esquerda,
coxinha e petralha. A política é uma atividade humana sendo, por
extensão, contraditória e conflituosa (como humanos e humanas
somos). Conflitos existem e deve-se lidar com eles procurando
aperfeiçoar o que dá resultados e transformando o que cause danos
excessivos, uma vez que existem males que devem existir em prol de
uma democracia.
Esse
discurso idílico em busca de intervenção militar revela a busca
por ordem diante de um aparente caos irresolvível. De acordo com os
noticiários da grande mídia, parece que estamos em um equivalente
hobbesiano de estado de natureza, em que a política é a terra de
ninguém e só o mais forte (mais capaz de corromper, de dar o
jeitinho – que é bem brasileiro) consegue sobreviver. É esse
discurso e essa atitude que deve ser mudada.
A
intervenção militar é a terra de cocanha, a terra sem males que
muitas pessoas querem crer. Mas, revela muito mais o descompromisso
com o próprio papel social que deveriam cumprir: o de cidadãs e
cidadãos engajados e participativos, que usufruam de direitos e,
PRINCIPALMENTE, CUMPRAM SEUS DEVERES. Reclame dos impostos e
reivindique sua aplicação correta nos serviços públicos que temos
direitos. Sonegar impostos é o caminho mais fácil de quem não quer
se organizar e participar ativamente das mudanças sociais. Próximo
da busca pela intervenção militar que, acredita-se, colocará ordem
na casa sem que se precise se mexer, é só deixar os militares
agirem.
Mais
do que um conflito de direitos, a situação dos caminhoneiros joga
na nossa cara que se não pararmos de polarizar a sociedade em bem X
mal, certo X errado e assumirmos o que Betinho classificou como
“cidadania ativa”, corremos o risco de ficarmos tão parados
quanto os produtos nas rodovias do país.
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