Recentemente
os noticiários mostraram vários atos de “justiça” praticados por
pessoas em diversos locais do país. Muitos deles ocorreram sem que os
“justiceiros” tenham provas de que os acusados são realmente culpados. Para
surpresa de muitas pessoas, não eram culpados. O que fazer depois de prova da
inocência de alguém quando esse alguém já deixou de viver, na verdade “foi
deixado”, ASSASSINADO é o termo mais condizente com o que aconteceu?
Mais
recentemente ainda, ganharam os noticiários do país e do mundo o caso do
torcedor que morreu após ter sido atingido por uma bacia sanitária na saída de
um estádio em Pernambuco. Caso de violência que causou indignação e desistência
de muita gente de ir assistir aos jogos torcendo pelo time do coração.
Ambas as
situações envolvem morte, surpresa e
novidade, que são alguns dos critérios utilizados para selecionar o que é ou
não noticiado e que os jornalistas chamam de valor-notícia. O ponto é que, a
partir dessas veiculações, cresce o que anda sendo chamado de “efeito
Sheherazade”, ou seja, práticas de justiçamento com justificativas que o
“cidadão de bem” (com todas as dificuldades existentes para definir o que seria
precisamente) está se defendendo.
Em relação
a isso, considero importante observar alguns pontos:
1. JUSTIÇA
NÃO É VINGANÇA. Há diferenças importantes entre uma e outra. Para compreendê-la
melhor é importante tratar de um dos conceitos de Estado: o conjunto de
instituições jurídicas, políticas, econômicas e sociais que funcionam com o
objetivo de garantir/buscar a harmonia social.
O Estado
deve deter o monopólio da violência, ou seja, só a ele é permitido agir
violentamente inclusivve tirando a vida de alguém, se tem como objetivo
garantir a proteção individual ou coletiva.
Pense na
seguinte situação: se está na nossa Carta Constitucional que a propriedade é
inviolável e somos roubados, o Estado deve garantir que o responsável seja
encontrado e levado a julgamento. Se eu descubro quem me roubou e entro na casa
dessa pessoa e retomo o que era meu, isso não é justiça, é crime, pois nossa
Constituição estabelece que a propriedade é inviolável (como está descrito
acima). Acompanhe: mesmo sendo ladrão, aquela é a casa dele, sua residência,
logo SUA PROPRIEDADE e a propriedade é o quê? INVIOLÁVEL, logo, invasão sem
mandato é crime e não justiça.
ATENÇÃO:
não estamos discutindo aqui a eficiência do Estado na garantia desse direito,
logo, se você pensou: “mas o Estado não faz nada!” você está saindo do foco da
discussão desta postagem.
Considere também que não é fazendo o papel do Estado que serão mudadas as condições de vida, segurança etc. Deve-se agir de acordo com a "cidadania ativa", definida pelo falecido sociólogo Betinho: não apenas cobrar, mas também propor e agir.
2. LINCHAR
NÃO É EQUIVALENTE A ROUBAR. Uma das discussões mais antigas na área do Direito
é como estabelecer a equivalência da punição com o crime cometido.
Mais uma
vez, ABRA SEU CORAÇÃO E PENSE NA SEGUINTE SITUAÇÃO: se uma pessoa rouba outra e
leva o aparelho celular e, posteriormente é pega e levada a julgamento, como
estabelecer a punição que seja equivalente ao dano gerado contra o indivíduo
que teve seu bem roubado? Um aparelho novo? O valor equivalente ao dinheiro que
não foi ganho pelo dono do aparelho enquanto ele esteve separado de seu bem?
Mas,
ampliemos: se a pessoa criminosa tiver matado alguém, a problemática é: se
tratamos de punição equivalente, uma vida pela outra, como pode ser equivalente
tirar uma vida de quem matou mais de um ser humano? É, se você para para pensar
nisso, verá que, como afirma o velho deitado: “o buraco é mais embaixo”. É
nesse ponto que cabe a pergunta: faz-se justiça ou vingança?
E assim
chega-se até outra pergunta: quando se prova que o “justiçado”, o ser que foi
linchado e morto, não era culpado, o que se faz? Pede-se desculpas? Ou, o mais
tenso, afirma-se que “puniram a pessoa errada” (então assassinar está correto
mesmo sem provas?)?
3. NÃO, NÃO
É DEFESA DE CRIMINOSOS O QUE ESTOU FAZENDO: o objetivo desse texto é levar
reflexão para quem lê. Não estou defendendo criminosos, estou defendendo a
humanidade que cabe a cada ser humano.

(...) não
há sociedade; e o que é pior que tudo, um medo contínuo e perigo de morte
violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta.
O motivo:
geralmente quando se fala que “bandido bom é bandido morto”, o criminoso modelo
não é o mais abastado, o filho do empresário milionário e sim o chamado “ladrão
besta” (referência feita a música da dupla de emboladores Caju e Castanha).
Quando se
afirma que direitos humanos só devem ser para humanos, desconsidera-se o
processo histórico que levou ao nível de “civilização” que atingimos.
DIREITOS
HUMANOS NÃO EXISTEM PARA PROTEGER BANDIDOS, MAS PARA PROTEGER A SUPOSTA
CIVILIZAÇÃO DE UM ESTADO DE BÁRBARIE.
Se “bandido
bom é bandido morto” então, do criminoso de “colarinho branco” ao que roubou um
saco de leite, todos devem ser punidos por igual.
Então, mais
uma vez, pense comigo: se roubo (fiquemos no mais simples, por enquanto)
caracteriza-se pela extração de algo de propriedade alheia, então, o saco de
leite e o dinheiro público estão na mesma categoria. Se a fome é elemento que
legitima o roubo, a discussão deve ser ampliada e com coragem para, inclusive,
mudar de opinião (no melhor estilo Raulseixista).
4.
PROFESSORXS E JORNALISTAS AGENDAM SETORES DA SOCIEDADE. Outro ponto que é
importante considerar diz respeito a liberdade de expressão. Existem estudos na
área de comunicação que tratam de algo chamado agendamento e diz respeito a
medida em que a mídia "agenda" a sociedade para debater ou tratar de
determinadas temáticas.
Exemplo: em
novela recente foi abordado o tráfico de pessoas e, pouco depois do início de
tal folhetim, foram denunciados casos de tráfico humano em vários jornais do
país. A novela "agendou" a sociedade na medida que chamou a atenção
para algo que acontece e não é muito divulgado.
Ainda há
discussões sobre agendamento sendo feitas, mas, entendendo essa ideia, pode-se
estendê-la como instrumento de análise do “caso Sheherazade": sendo
formadora de opinião (me resigno a não tratar da polêmica se ela efetivamente é
ou não) ao expor seu pensamento de maneira a legitimar a "justiça"
com as próprias mãos, ela agendou a sociedade e legitimou ações como essas.
É a mesma
linha de raciocínio para professorxs. Quando afirmamos que “bandido bom é
bandido morto” ou fazemos comentários racistas, sexistas, homofóbicos seja em
sala de aula, seja em redes sociais, estamos “agendando” nossas turmas no
sentido da intolerância e do crime. Isso ocorre porque somos vistxs como
autoridades que “sabem do que falam”, ou seja, temos discurso competente.
Afirmar que
“o facebook é meu e posto o que eu quero” tem muito sentido, mas quando se lida
com público e com público “em formação” (o nosso em sala de aulas), o facebook
é menos nosso do que imaginamos pois viramos referenciais para, às vezes,
centenas de pessoas.
Quando
abordamos esses assuntos, “agendamos” nossas turmas que pensarão a partir do
ponto de vista que expusermos. Eis o ponto de inflexão que deve ser levado em
consideração por profissionais de comunicação e de magistério.
O ponto é
que não parece existir muita vontade de problematizar o que é exposto pela
mídia e qualquer tentativa de regulação do que é veiculado é tratado como
censura, quando não é. É, sim, a busca por responsabilização acerca do que se
expõe.
Responsabilização que também cabe a nós, professorxs. Devemos ter cuidado com o que expomos, problematizar constantemente para não nos tornarmos, sem notar, incentivadores de violências.
Pense FORA DA CAIXA.
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