A recente onda de reuniões de jovens, adolescentes,
púberes em shoppings de várias cidades do país gerando alvoroço e reações desde
as mais passivas até as mais agressivas, chama atenção menos pelas repercussões
e mais por representarem uma série de aspectos que diz respeito a um ponto:
tratamos muito mal nossas crianças e jovens. Isso mesmo: nossa sociedade e,
mais amplamente, nossa civilização trata seus - nossos/as - jovens
descuidadamente e mesmo violentamente. Consideremos os seguintes aspectos para
reflexão e posterior debate:
1. NÃO SÃO
MARGINAIS:
quando lemos ou ouvimos a palavra marginais, o pensamento é quase automático na
geração da imagem de alguém armada/o com faca ou qualquer objeto perfurocortante
ou ainda com uma arma de fogo apontada para cabeça de um cidadão/ã trabalhador/a.
São, na maioria, jovens na chamada pré-adolescência e adolescência que
decidiram ir ao shopping como programa de final de semana de muita/os nessa
mesma faixa etária e pessoas acima dessa faixa também. Se vamos insistir no uso
do termo marginal, que o façamos entendendo que se refere a jovens que estão A
MARGEM daquilo que é de direito geral: ir e vir, também conhecido como
liberdade de locomoção. Consideremos também que se queremos mudar a percepção
de algo, devemos mudar a forma com a qual nos referimos a esse algo, afinal, as
palavras têm força e ideologia embutidas;
2. NÃO ESTÃO
ALI PARA ROUBAR: o medo maior da civilização ocidental, a expropriação da propriedade
privada foi logo invocado e trazido a fala de muitas pessoas. Temia-se -
teme-se - o roubo do que se trabalhou
muito para ter e a presença dessa parcela da juventude nos shoppings, que são
um bom exemplo de templo de oferta de pré propriedades privadas, ativou o
alerta vermelho de muitas pessoas que estavam ali para adquirir um bem ou
apenas cobiçá-lo.
Alguém, com certeza, afirmará: - mas vi gente sendo
assaltada e tem jovem ali que vai para roubar mesmo. Pois bem, façamos o
seguinte questionamento: há unanimidade em toda manifestação social? Provavelmente
não. Todas as pessoas que participam de movimentos são plenamente conscientes
do que estão reivindicando? Penso que não e as recentes manifestações no país
dão prova disso, afinal, muitos dos que foram às ruas sequer sabiam a função do
senado e da câmara. Generalizações são muito perigosas e no caso do Brasil,
geralmente criam e alimentam estereótipos contra grupos menos favorecidos
financeiramente.
3. SÃO
EXEMPLOS DE LUTA DE CLASSES, SIM: algumas pessoas afirmaram e ainda afirmam que a
luta de classes já não existe mais, principalmente após o fim da União Soviética
e do suposto fracasso do socialismo aplicado. O conceito ultrapassa a localização
geográfica e o tempo no qual foi elaborado. Devemos lembrar que não é a
realidade que deve se adequar ao pensamento, mas o pensamento é que deve buscar
dar conta da realidade e sabendo que nunca poderá dar conta de tudo pois a vida
social é dinâmica e fugidia demais para ser cristalizada.
Temos uma classe social, a dos "assalariados"
e seus filhos e filhas que também são alcançadxs pelas propagandas oferecendo a
beleza, a sedução, a auto-estima através de tais ou quais produtos. Pense: se
te oferecem um produto que dá a entender que te fará mais bela/o, divertida/o,
inteligente e você decide adquirir essas supostas qualidades e sabe que é no
shopping que elas estão, para onde você vai para obtê-las? Provavelmente não
será na feira perto de sua residência - sabendo que as versões desses produtos
são de origem duvidosa, "falsiê" como se dizia outrora, a feira não
será o local para comprá-los. Você irá para o shopping que te dá a suposta
certeza que eles são "originais".
A classe social que frequenta, historicamente, os
shoppings como cobiçadora e eventualmente compradora acreditava na suposta exclusividade
de acesso, mas a ampliação do poder aquisitivo fez com que aquelas pessoas que
antes apenas trabalhavam nesses "templos" também pudessem adquirir os bens com os quais trabalhavam.
Esse é o aspecto da luta de classes que ultrapassa a
visão clássica de enfrentamento por questões trabalhistas, salariais. As classes
que lutam hoje o fazem por espaços, pelo direito de ir e vir - e permanecer nos
locais públicos. No caso dos shoppings, tem-se uma mescla de público e privado e
a questão que aparece é: qual o papel do Estado nessa situação? Em que medida a
proteção da propriedade privada a ser vendida é função do Estado? Mais ainda:
deve o Estado legislar sobre a entrada e permanência dos "rolezeiros"
em shoppings?
4. NÃO SÃO UMA
GERAÇÃO PERDIDA: para tratar desse ponto, farei uma pergunta: você, aos doze anos
gostava de ter doze anos? Provavelmente, não. Há muita gente compartilhando
mensagens que trazem essa argumentação. Será difícil, talvez impossível
encontrar alguma criança ou jovem que, ao acordar, tenha afirmado com toda
alegria: - como sou feliz por ser criança! Como sou feliz por ser adolescente!
Essa é uma construção discursiva posterior. É também
um exemplo do choque de gerações, uma vez que a geração estabelecida vê a
geração nova como degenerada, "perdida". Exemplo disso é o início de
frase clássico: "no meu tempo..." A resposta para essa afirmação é:
no seu tempo você era vista/o como irresponsável e afins. E tem-se um outro
questionamento: como cobrar de jovens entre dez e vinte e dois anos uma
consciência crítica capaz de analisar a situação na qual se encontra? Mesmo as
pessoas que são, em teoria, críticas, provavelmente não desenvolveram tal nível
de criticidade de uma hora para outra.
Nessa perspectiva insere-se a função da escola, mas
essa, sendo aparelho ideológico do Estado (é Althusser, sim e não está
ultrapassado pois serve para entendimentos da situação social vigente),
dificilmente (e no Brasil parece-me mais ainda) cumprirá um de seus - em teoria
- papeis: desenvolver a capacidade de problematizar a realidade e poder agir
sobre esta.
Por isso os rolezinhos nas bibliotecas dificilmente
acontecerão. Falta algum tanto de vontade política para criação de condições e
manutenção destas para formação de seres pensantes e, além da vontade política,
há a vontade pessoal de muitas/os professoras/es, mais do que mal pagos,
pessoalmente descrentes da efetividade de sua função (não é regra geral, mas
muitas/os professoras/es ainda se mantém no ofício por não crerem-se capazes de
fazer ou aprender outras coisas ou realizar, por exemplo, o sonho de serem
médicas/os etc.).
5. A REAÇÃO AOS ROLEZINHOS É UMA MOSTRA DO QUANTO
TRATAMOS MAL NOSSAS CRIANÇAS E JOVENS: muito bem, faço agora uso de uma citação
de C. W. Mills acerca da imaginação
sociológica:
Quando, numa cidade de cem mil habitantes, somente
um homem está desempregado, isso é seu problema pessoal, e, para sua solução
examinamos adequadamente o caráter do homem, suas habilidades e suas
oportunidades imediatas. Mas quando, numa nação de 50 milhões de empregados, 15
milhões de homens não encontram trabalho, isso é uma questão pública, e não
podemos esperar sua solução dentro das escalas de oportunidades abertas às
pessoas individualmente. A estrutura mesma das oportunidades entrou em colapso.
Tanto a formulação exata do problema como a gama de soluções possíveis exigem
que consideremos as instituições econômicas e políticas da sociedade, não apenas a situação pessoal e o caráter de
um punhado de indivíduos."
(MILLS, Charles Wright. A
imaginação sociológica. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1965.)
A imaginação
sociológica possibilita enxergar além do que a vista alcança, superando o
senso comum e buscando as relações, estas fundamentais para a resolução das
questões sociais como os rolezinhos, a homofobia, a transfobia, o racismo, o
sexismo etc.
Os rolezinhos são uma resposta daquelas classes sociais
à estratificação social vigente (lembrando que estratificação social é a forma
com a qual a sociedade hierarquiza os grupos a partir do conjunto de fatores -
economia, cultura). Essa resposta foi construída historicamente, em um
cotidiano segregacionista que se intensificou com o processo de globalização. A
falta de políticas de Estado direcionadas para a juventude brasileira amplia as
repercussões da miséria produzida pelo sistema capitalista e traz, ainda, uma
faca de dois gumes: a partir do momento em que o Estado passa a investir em
espaços para o público que forma os rolezinhos, ao mesmo tempo afirma a
fronteira que não deve ser ultrapassada por esses grupos. É bom, mas é ruim
também. Garante espaços de lazer, mas também aparta de outros espaços que
também são de direito de locomoção deles.
O que fazer, então? Esse é o desafio e que todas/os
deveriam participar do debate, pois enquanto forem efetivadas soluções
paliativas, estas serão pseudorresoluções.
Enquanto o foco dos olhares acerca dos rolezinhos
for as perturbações geradas no fim de semana das classes sociais que frequentam
os shoppings, enquanto se repetirem afirmações de que essa geração está
perdida, formar-se-ão ilhas cercadas de pessoas que saíram da letargia de
apenas produtores e se entenderam como consumidores e que reivindicam o direito
de também serem "zumbis" consumistas. Um pouco de conhecimento em
Geografia pode ajudar a fazer a relação: cedo ou tarde, ilhas são cobertas pela
água circundante.
Pense FORA DA CAIXA.
Tenha HISTÓRIA NA CABEÇA.