A Marcha das Vadias passou e depois dela vieram os
comentários. Comentários que foram desde os maiores elogios até a mais pura
negação sem deixar de passar pela ridicularização, intolerância e desrespeito.
Enquanto professor, presenciei colegas de profissão afirmarem que um movimento
que busca respeito não deveria ter participantes seminuas gritando palavras de
ordem pelas ruas e se auto-intitulando vadias.
Decidi escrever algumas considerações sobre a Marcha das
Vadias com o objetivo inicial de esclarecer alguns tópicos e, claro, instigar o
pensamento fora da caixa através da Discórdia. Comecemos, então:
1. O MOVIMENTO TEM
UMA ORIGEM VIOLENTA.
Após a ocorrência de vários estupros na universidade de
Toronto, no Canadá, um policial afirmou que, para não serem violentadas
sexualmente, as mulheres não deveriam se vestir como vadias. Mais de três mil
pessoas protestaram e, a partir dali, espalhou-se pelo mundo.
2. QUANDO ALGUÉM É
ASSASSINADO A CULPA É DO ASSASSINO; POR QUE QUANDO UMA MULHER É ESTUPRADA, A
CULPA É DELA?
Vamos seguir o raciocínio em etapas: quando alguém é roubado,
busca-se o ladrão que cometeu o delito e não se diz: “quem mandou ter celular?
Só podia ser roubado, mesmo. Bem feito!”; quando alguém é assassinado,
destaca-se o crime, procura-se o criminoso e não se diz: “quem mandou estar
vivo? Se está vivo é para ser assassinado! Acho é bom!”
Quando
uma mulher sofre um estupro, há um olhar mórbido, acusador para a vítima e
pergunta-se afirmando: “será que ela não provocou?” “você reparou na roupa que
ela está usando? Pedindo pra ser estuprada!”
É UMA
LÓGICA PERVERSA que naturaliza o estupro contra mulheres e é um crime brutal,
uma vez que o que há de mais pessoal, o próprio corpo, é violado contra vontade
de sua dona.
3. VADIA = LIVRE PARA
VESTIR O QUE QUISER E FAZER O QUE QUISER COM O PRÓPRIO CORPO.
Ouvi muito a frase: “como querem respeito e se chamam de
vadias?” Vamos entender: usa-se o termo para definir quem não tem ocupação,
quem não faz nada. No popular, é referência a vagabunda ou, ainda, prostituta.
As mulheres que foram violentadas na universidade de Toronto, pense bem,
universidade de Toronto, poderiam ser definidas assim? Provavelmente não.
Se você
é uma mulher e está lendo esta postagem, és vadia porque escolhes a roupa que
queres usar? E mais ainda: só porque sua roupa tem um decote ou é um short curto você é uma prostituta? Penso
que não.
O uso
do termo Vadia tem o objetivo de negar o conteúdo preconceituoso que a palavra
tomou. As palavras e o sentido que a elas é dado também são ideológicas.
Quando
o policial usou o termo, reafirmou uma visão machista e sexista que legitima
muitos crimes. A mesma sociedade que veicula propagandas afirmando que as
mulheres devem se vestir de maneira sensual e agradar namorados, maridos e
afins, é a mesma que chama de vadia essa mesma mulher que sofre uma violência
por estar usando a roupa que a propaganda vendeu com a característica mágica de
torná-la sensual e atraente.
Temos uma
contradição perversa e cruel. Se quisermos adicionar um elemento novo, então
perguntemos o que justifica os estupros contra mulheres que usam burcas ou
vestimentas “mais comportadas” como o caso recente de estupro coletivo na Índia
(é recente a notícia, mas atos dessa natureza ocorrem há muito tempo, tempo
demais, até).
Se o corpo feminino é usado como objeto para vender
cervejas, roupas e pode ser atraído a partir da compra de determinados
produtos, é exatamente isso o que a Marcha pretende negar, outros óculos, outra
visão. Quando uma Vadia mostra o seio, a ideia, entenda, é: "O PEITO É
MEU, SE USO ROUPA DECOTADA, É PORQUE QUERO USAR, E NÃO PARA VOCÊ, HOMEM,
PEGAR!"
Mas o que é exposto em muitos lugares (destaque para a
imprensa) são as fotos das mulheres que mostram os peitos, contribuindo para
uma imagem equivocada e distorcida do objetivo da Marcha...
Ir para a Marcha ajudaria muito na quebra dessa visão
distorcida. A Marcha é contra as violências que as mulheres sofrem, sendo a
física, a violência extrema. As simbólicas estão por aí o tempo inteiro, desde
a imposição de cores, passando pelos brinquedos, os assovios, as propagandas de
cerveja.
Alguém vai afirmar: "MAS AS MULHERES ACEITAM ESSAS
SITUAÇÕES DE INFERIORIZAÇÃO, USAM ROUPAS DESSE OU DAQUELE JEITO, PARTICIPAM DOS
COMERCIAIS..."
Pensemos: COMO COBRAR UMA REFLEXÃO ACERCA PRÓPRIA CONDIÇÃO
QUANDO NÃO SE FOI INSTRUMENTALIZADA PARA ISSO, QUANDO TODO O PROCESSO DE
SOCIALIZAÇÃO (lembrando Durkheim e outros) DIRECIONOU A FORMAÇÃO DE MUITAS PARA
ESSE FIM?
4. TÁ, CONCORDO COM
PARTE DO QUE ELAS REIVINDICAM, MAS TEM QUE SER A FAVOR DO ABORTO? ISSO, PARA MIM, É
CRIME.
Uma das imposições sociais mais recorrentes para as mulheres
é a de ser mãe. Afirma-se que toda mulher é uma mãe natural. Parir é natural,
ser mãe é social, culturalmente aprendido.
(…)
(…)
(…)
PAUSA ESTRATÉGICA PARA A FÚRIA E INDIGNAÇÃO QUE BROTOU NO
CORAÇÃO DE MUITXS LEITORXS.
ATENÇÃO, LEIAM COM O CORAÇÃO ABERTO E A MENTE TAMBÉM:
Tudo que não está atrelado a natureza é cultural. Exemplo:
fome é natural, saciar a fome é natural. Saciar a fome comendo aquela feijoada
ao invés de feijão tropeiro é cultural. Dormir é natural. Dormir em cama
ortopédica, cultural, considerando que o ato de dormir em tal móvel é parte do
que se prescreve para determinados males da coluna ou, simplesmente porque se
quer dormir em tal cama.
Ficar prenha (ou engravidar) é natural. Completar os nove
meses de gestação é parte do que há de natural na gestação humana (alguns fetos
não completam esse tempo). Mas SER MÃE, é algo que se aprende. Há o aprendizado
da paciência, do tom de voz para garantir o controle, os sistemas de recompensa
para comportamentos adequados, as “palmadas pedagógicas” que fazem parte do SER
MÃE.
Uma problematização importante é a de que se ser mãe é
natural, como explicar as mães que negam filhxs quando nascem? E por favor, não
argumente com “estava possuída pelo mal” ou algo do gênero. A questão é que
aborto é mal discutido na sociedade e negar a legitimidade de uma Marcha que
busca melhores condições para quem, historicamente, esteve sempre sofrendo
vituperações é demonstração de pouca sensibilidade.
Quando se discorda de um movimento, deve-se agir em prol do
aperfeiçoamento, seja discutindo, seja atuando...mas calar-se e apenas criticar
este ou aquele aspecto ou todo o movimento, é contribuir para a perpetuação do
mal. Como escreveu o poeta: o problema não é a maldade dos malvados, mas a
omissão dos "bons".
Precisa-se também sair do “umbigocentrismo” da própria
opinião. A Discórdia é saudável. O que não contribui para a mudança social é a
postura do “já opinei e fui ridicularizadX. Não falo mais! Pronto!” o primeiro
passo para uma transformação contundente é considerar que suas ideias podem e
serão recusadas. Injustiça? Talvez. Motivo para não participar? Não.
Como afirmei no início dessa postagem: não quero convencer
pessoas a saírem nas ruas apoiando a Marcha das Vadias, mas esclarecer aspectos
que, enquanto professor, é muito inquietante ver e ouvir sendo mal
interpretados ou propositadamente mal interpretados.
O lema é: Discórdia hoje, Discórdia amanhã, Discórdia SEMPRE
Pensemos fora da caixa.
Muito bom!
ResponderExcluirExcelentes contribuições. Adorei a ideia da discórdia em um mundo/tempo em que o discutir, parece, que virou "brigar" necessariamente. Parabéns Colega professor.
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